Dentro de uma caixa móvel, construída em madeira clara e acrílico transparente dobrado, acondicionada num estojo de descanso de espuma recortada, está a máquina de desenhar de Luciana Ohira e Sergio Bonilha. A maleta transportável - que confere o status de “hardware” a seu mais recente projeto artístico - marca presença também nesta exposição como uma seta simbólica dos artistas-viajantes para suas participações em exposições coletivas e individuais no Brasil e exterior. Como um relógio de parede aberto - com pequenos contrapesos torneados mecanicamente em bronze - entreolhamos um motorzinho à corda que faz a máquina de desenho funcionar.
Aparelho de conservação museológica que controla graficamente a umidade e a temperatura - destes que se vê corriqueiramente em cantos de sala de exposição - um entintado ‘termohigrógrafo’ faz analogicamente as vezes da mão do artista desenhando direto sobre a parede. Tal resultado na formação de linhas excelsas - que se entrecruzam de acordo com a oscilação ambiental gerada por um sistema mecânico simples - exige calibração precisa para que a máquina não pare e continue desenhando como objeto portátil atrelado à paisagem de si mesma.
Ao tornar público os croquis e as provas de design de “horizonte discreto” na primeira exposição da Temporada de Projetos 2009 do Paço das Artes, Ohira e Bonilha abrem uma clareira ao compartilhar suas descobertas empíricas com o visitante. A bússola com a qual desejam nos orientar em relação à sua obra talvez seja a de uma busca valente por outros caminhos em meio à erosão do mundo: a uma direção descomplicada e sem melindres, onde materiais aparentemente obsoletos - como uma placa espiral de bimetal - possam ser transformados em um termômetro ou um super ímã que experimentalmente trabalhe com força de um motor magnético que atiça a invenção comum dos referidos artistas.
Olhando para a parede esperamos morosamente a aparição do desenho. Ao longo da lógica do realismo capitalista, o trabalho desta dupla tem o mérito de afastar-nos dos clichês da cultura de consumo rápido. O tempo difere do que é desenhado com as mãos.
Mas talvez possa se acelerar de repente à mercê da temperatura do vento e da água no entorno. O “horizonte discreto” é criado sob os efeitos de erro e acerto da ocupação física da máquina como passatempo.
Santa Ifigenia site-specific: Um passeio com Luciana Ohira e Sergio Bonilha, por Marcio Harum
Esta entrevista com Luciana Ohira e Sergio Bonilha, selecionados para a Temporada de Projetos 2009, foi precedida por diferentes situações: uma visita ao estúdio de esquina onde a dupla trabalha no Sumaré, que serve de endereço do Atelier Paulista e teve como residente em seus anos de moradia em São Paulo ninguém menos do que o grande León Ferrari. A esticada da conversa se deu num balcão de padaria da Vila Madalena no fim de tarde, onde Sergio chama os funcionários pelo nome por frequentar o local desde a infância.
Em outra data após o encontro do ateliê seguimos num passeio matinal pela região da rua Santa Efigênia, megacentro comercial paulistano de componentes eletro-eletrônicos vendidos, inclusive, pelo sistema “por kilo”. O ponto de partida foi o Café Girondino do Largo São Bento, justo em frente ao Mosteiro. Mesmo lugar onde o artista Tiago Judas (vocalista e tecladista da banda ZOX, com Bonilha na bateria, atuante por volta de 1999) foi ameaçado por membros de uma mesma família de origem lituana, caso não “assassinasse” o seu famoso personagem em quadrinhos, Kocinas, homônimo da referida família.
No quadrilátero formado pelas ruas Santa Efigênia, Timbiras, Aurora e Andradas, Ohira e Bonilha vasculham lojas de seu conhecimento e contatam vendedores profissionais em encontrar materiais e peças raras – novas e usadas, multicamadas essenciais na realização de seus trabalhos artísticos. Painéis e motores de microondas, calibradores que mais parecem bússolas, arduínos (hardware com especificação open-source, possui um processador com chip leve e barato instalado com placas e saídas analógicas-digitais), magnetos, mecanismo de tocadiscos, botões de liga/desliga, resfriador de processadores (os chamados coolers).
Quase tudo é encontrado “no estado, sem garantia”. A não ser o almoço no Jacob, conhecido restaurante libanês pegado ao Mosteiro de São Bento.
Marcio Harum: A construção do trabalho de vocês se dá muitas vezes pelo que é encontrado numa saída às compras atrás de peças eletro eletrônicas, à mercê dos containers chineses que desembarcam no porto de Santos. Um compasso que surge em meio ao descompasso do entorno, uma espécie de ação descondicionadora. Que pensam desta colocação?
Ohira/Bonilha: Acertou em cheio! De fato, quando saímos para procurar algum componente ou peça necessária a um projeto em andamento, nunca temos a certeza de encontrar aquilo que procuramos; mesmo gastando muita borracha e tomando guaraná no asfalto de Piratininga, há dias em que não se encontra coisas triviais. Porém, não encontrar algo é achar outras coisas... (isso ficou com cara de Confúcio), atualmente chinesas, é claro!
Nos "lixões" da região da Santa Efigênia, há algum tipo de material em que não prestavam atenção tempos atrás e mudaram totalmente de ideia, testando-o como se fora uma verdadeira descoberta?
Isso acontece todo dia (risos), entretanto, sempre surge alguma novidade "nova de verdade"... O que fazemos com freqüência é combinar esses achados para que os projetos funcionem conforme imaginávamos. O contrário também acontece, compramos algo para testar – apenas porque é interessante – e daí começamos a pensar o que fazer com aquilo. A verdade é que não importa em nada se o equipamento é “hi” ou “low-tech”, o que importa é a peculiaridade do funcionamento e a potência poética que daí possa derivar.
Marcio Harum: Que tipo de projeto vocês já desenvolveram com baixa energização, de 9 a 12, por exemplo?
Ohira/Bonilha: A maioria dos nossos projetos acaba utilizando baixa voltagem pois é comum precisarmos de autonomia em relação a pontos de energia e, no mais das vezes, os circuitos eletrônicos que montamos consome pouca energia. Por isso, quando descobrimos painéis solares e superímãs com preços acessíveis, começamos a pensar em usar energia solar e motores magnéticos para dar maior autonomia aos trabalhos e menos trabalho para a equipe da exposição... além de correr menos risco de choques elétricos, claro.
Marcio Harum: Em suas obras, o som é entendido por meio do ritmo da erosão do mundo a sua volta. O "não serve, joga no lixo" perde totalmente o sentido. Que tipo de máquina ou invenção vocês gostariam de conseguir desenvolver fora do campo da arte?
Ohira/Bonilha: Recentemente, começamos a pensar num alimentador automático para pássaros, peixes e tartarugas. Bom, tudo começou quando as tartarugas da Luciana escaparam do tanque cinco vezes num só dia para procurar comida no jardim; talvez o problema seja outro, mas não custa testar. Falando em tartaruga, a ideia de obsolescência que circula por aí é muito questionável. Muitas coisas, quando se tornam obsoletas para determinado fim, podem ter outro uso completamente diferente. Por exemplo, Harriet, uma das tartarugas recolhidas por Darwin nas Ilhas Galápagos, faleceu apenas dois anos atrás.
Marcio Harum: Os funcionários que os atendem nestas lojas compreendem o que buscam, como utilizam estas pecinhas e o que fazem como trabalho? Sentem-se mais “experientes” neste ambiente hoje em dia?
Ohira/Bonilha: Depois de ir tantas vezes à Santa Ifigênia, acabamos fazendo boas amizades por lá, isso ajuda muito e também torna a visita mais bacana. No começo era bem difícil, agora sabemos ao menos perguntar algo... Uma coisa que acaba acontecendo é surgir alguma conversa sobre o último projeto quando vamos à loja para comprar o material do próximo projeto... então surgem novas soluções para os problemas que tivemos no processo anterior. Mas não é só disso que se vive, somos também clientes assíduos da padaria e adoramos o pessoal que lá trabalha.
Marcio Harum: Que estória é essa de que uma mecha de cabelo também é uma máquina?
Ohira/Bonilha: Olhe, essa foi uma das descobertas que mais nos surpreendeu. Parece absurdo, mas a pouca variação de comprimento e elasticidade que a umidade do ar provoca em uma mecha de cabelo é suficiente para fazer funcionar – junto a duas ou três alavancas – um sistema analógico para medição desse fator ambiental. Assim como essa “quase não máquina”, há outras invenções já antigas e muito simples ainda em uso. Talvez houvesse muitas mais, não fosse o voraz afã consumista.