Fernando Oliva
Um homem surge ao longe, atravessa um rio, água na altura do pescoço, sai pela margem, continua a caminhar decididamente na direção do espectador, sai pela esquerda. Fim.
Uma simples, quase banal, mas incisiva e profunda operação de deslocamento. As transformações que acontecem no tempo e no percurso — ou melhor, pelo tempo e por meio do percurso — são a matéria pulsante de que se utiliza o artista mineiro Marcellvs L. em seu vídeo de número
0778, também conhecido por
man.road.river.
No início, vemos apenas uma paisagem — na verdade, uma antipaisagem, um anticlássico, pois o enquadramento fez a opção por uma situação nada sedutora, agravada pela deliberada falta de qualidade técnica, que resulta em um plano desfocado, “sujo”, no limite da abstração.
A cena parece estática, até que passamos a notar micromovimentos, uma pequena vibração ao longe que, então, revela-se uma figura humana e conduz nosso olhar até o “fim”. É importante ressaltar que, a partir de imagens e acontecimentos que não reivindicam uma lógica interna, o vídeo de Marcellvs oferece ao espectador algo próximo de uma narrativa, um pequeno fiapo de sentido que a custo vamos seguindo, no desequilíbrio entre a expectativa e a frustração.
Também se impõe aqui a clássica polarização entre natureza (simbolizada pelo rio)
versus cultura (simbolizada pelo homem e, conseqüentemente, a civilização). Marcellvs dialoga ainda com outras manifestações contemporâneas no universo da imagem: os cinemas de autor do norte-americano M. Night Shyamalan e do japonês Hideo Nakata. Tanto em Shyamalan
(A Vila, 2004) quanto em Nakata (
O Chamado 2), o dado insondável, aquilo que cabe a nós construir mentalmente e imaginar visualmente, é representado pelo desconhecido e os perigos que ele carrega — seja no meio idílico da natureza (caso de
A Vila, cuja célebre seqüência da travessia da floresta pode ser comparada à transposição do rio no vídeo do artista brasileiro), seja no ambiente degenerado do urbano (em
O Chamado 2, em que uma fita de vídeo com uma mensagem fatal é enviada aleatoriamente para os habitantes da cidade. É curioso notar que faz parte do trabalho de Marcellvs uma “operação rizomática” em que ele remete dezenas de cópias de seus filmes para destinatários escolhidos ao acaso na lista telefônica de Belo Horizonte, sem nada explicar sobre sua obra ou de quem se trata).
Se em
man.road.river (ganhador do prêmio mais importante do 51º Festival Internacional de Curtas-Metragens de Oberhausen, na Alemanha, e selecionado para o 15º Videobrasil) o homem enfrenta o meio natural (e é impossível não notar as referências plásticas e sonoras ao gênero do terror), no vídeo de número
0667, a figura humana é sistematicamente ameaçada pelos automóveis e caminhões em uma auto-estrada — em mais uma lenta travessia-penitência carregada de sentido religioso, mesmo na ausência de um rio que não se abre à passagem do homem.
Pela via sonora, 0667 faz referência direta à arte de Jean-Luc Godard e seus filmes ambientados no espaço urbano, em que é comum encontrar personagens acuados pelos carros e suas incômodas e estridentes buzinas
(Duas ou Três Coisas que eu Sei Dela, de 1976;
Nouvelle Vague, 1989; e
Paixão, 1982). Também o som de
man.road.river e de
0667 pode ser percebido como uma experiência godardiana, com suas características cacofonias e fragmentações. Ao assumir o entendimento e a legibilidade óbvios como recursos a serem evitados na relação som imagem, Godard declarou ter sido decisiva a influência da massa sonora caótica, indiferenciada e ininterrupta da floresta tropical amazônica.
Entre os embates propostos por esta curta (9’30’’, cor) seqüência, temos: aparição x desaparição, intenção x acaso, e, acima de tudo, natural x construção, atravessados pela ideia de verossimilhança, uma questão-chave para todo o cinema moderno e também para os trabalhos pioneiros da videoarte, notadamente as criações de Wolf Vostell e Nam June Paik a partir dos anos 1950. Enfim, trata-se da tensão quase insustentável entre o que parece intencional e o que se situa no domínio do imprevisto e do incontrolável — como nas obras de Rodrigo Matheus, Rubens Mano e Cao Guimarães, para ficarmos em alguns artistas brasileiros da geração de Marcellvs L.. Estes compartilham do mesmo
zeitgeist, borram as fronteiras entre alta e baixa cultura e arrebentam com as noções convencionais que envolvem o dilema documentário x ficção.