Nos sonhos mais loucos do século XIX apareciam imagens de rios onde corria limonada, fontes de onde jorrava champanhe, árvores que davam compotas e bolinhos já prontos, frangos que caíam assados diretamente do céu para os pratos de homens e mulheres aparelhados com asas de borboletas e antenas de formiga. Um mundo de abundância e fartura, em que as coisas, como em encantamento, integravam-se aos seres humanos, sem nunca deixar de sustentar um sorriso afável, uma expressão de harmônica alegria. Nesses sonhos, o trabalho humano, “fonte de toda riqueza”, seria capaz de transformar a natureza, e “dar à luz as criações que dormitam como possíveis em seu seio”, nas palavras de Walter Benjamin.
É possível que esse sonho tenha se transformado em pesadelo, e o que hoje se testemunhe seja o triunfo daquilo que também Benjamin chamou de “sex-appeal do inorgânico”. Ele será o grande motivo da elegia ao trabalho mumificado a que se denomina design, operação que transforma os produtos humanos em sujeitos dos mais compulsivos desejos e angústias. Neste mundo, o nome das coisas se escreve em capitais: berrantes, coloridas, onipresentes. O que elas prometem vai muito além do significado do seu nome.
Nesse universo de coisas que se personificam surge uma nova categoria de objetos. Eles são, ao mesmo tempo, coisa e invólucro, conteúdo e continente. Guardam intensa semelhança com referentes aos quais são imediatamente associados, embora, à medida mesmo em que se conclui a associação, desperta-se a sensação de que existe algo deslocado. Tais objetos parecem ser derivações desses referentes que, de alguma maneira, perderam algumas das qualidades originais de um suposto modelo (material, peso, textura, temperatura etc.), sem perder parte de seus atributos (função, aparência etc.). São “pela metade”. Alguns retêm a qualidade material e a aparência daquilo que poderiam, ou deveriam conter e, simultaneamente, substituem a função desse seu suposto conteúdo. Outros são capazes de emular a utilidade de seu modelo se com ele forem confundidos. Há ainda aqueles que mostram aquilo que devem proteger. Muitos cumprem o que não prometem.
É possível que sejam fruto de uma confusão da percepção. Talvez pertençam a sistemas distintos daqueles pelos fomos habituados a nos orientar. Ou pode ser que estejam defasados. Ou tenham se formado apenas incompletamente. É possível também que sejam dotados de uma linguagem muda, amputada. Perderam a legenda. Ou falam de coisas que dizem seu nome numa língua quase indiscernível mas que se confunde com a nossa. São simulacros de um universo decaído? Esperam a restituição de suas propriedades originárias? Aguardam o momento, enfim, que não terão mais que ser úteis? Têm a esperança que seu significado se desgaste por completo? Ou, ao contrário, contam com alguém que os redefina apropriadamente?
Seus nomes correspondem ao que são, mas também estão aquém do que são. Enquanto isso vão cumprindo, em silêncio, seu desígnio.
Prateleira
PINO
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Instalação Prateleira (2009), de PINO (Foto: Divulgação)
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Instalação Prateleira (2009), de PINO (Foto: Divulgação)
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Instalação Prateleira (2009), de PINO (Foto: Divulgação)
Fernanda Pitta
Fernanda Pitta é historiadora, doutoranda em História da Arte pela ECA-USP, mestre em História pela Unicamp. Professora da área de História da Arte e História Contemporânea (na Escola da Cidade, FAAP e Unicid), é membro do conselho editorial da Revista Número. Foi curadora assistente da Exposição Poesia Concreta (Instituto Tomie Ohtake - SP), em 2007. Organizou com Cécile Zoonens, da EXO Experimental org., o Encontro Internacional Estética e Política, no SESC Belenzinho, em 2005. Escreve regularmente para o programa de exposições do Centro Universitário Maria Antonia (USP). Tem textos sobre arte publicados em revistas e catálogos, como Art'Cultura e 19&20.