M.M.: Normalmente as práticas ligadas ao campo das artes visuais são bastante solitárias. Há coletivos e parcerias, são, entretanto, uma minoria. O que os levou a trabalhar em dupla? Quais as motivações? B.O. e V.T.: O disparador da nossa produção conjunta foi um exercício hipotético de projeto para um jardim de uma casa em Foz do Iguaçu. Haviam duas plantas que escorriam pelas frestas do quintal e dos terrenos baldios da região: cosmo amarelo e erva de santa luzia. A partir delas, começamos a refletir sobre esta paisagem cotidiana, daninha, ordinária. A conjectura de um jardim de ordinárias nos fez iniciar um processo de diálogos neste âmbito que foi bastante rico: por um lado, as contribuições da arquitetura e das especificidades do desenvolvimento de projetos paisagísticos e, por outro, as práticas de desenho, gravura e fotografia e o debate decolonial sobre paisagem e representação na arte.
Desde então, a possibilidade de encontros que pudessem estender o exercício de criação de hipóteses em comum nos pareceu não só interessante, mas necessária. Compartilhávamos também diversas angústias com relação aos limites da produção acadêmica, pois estávamos um no meio do mestrado [Bruno] e o outro caminhando para o fim da graduação [Victor]. A busca por outras metodologias de trabalho mais interdisciplinares foi ainda um aspecto partilhado desde o início, já que pressupõe uma outra noção das práticas tanto artística quanto arquitetônica. Desse modo, faz parte da investigação o desafio de pensar junto e de instaurar outras metodologias que possibilitem a articulação de enunciados mais plurais e polifônicos.
M.M.:As experiências acadêmicas inevitavelmente influenciam a produção. Às vezes de modo mais direto, às vezes menos. No caso de vocês, tenho a impressão que para o Bruno, que se considera um artista pesquisador, o tema do mestrado é um fio condutor importante para as questões ligadas ao trabalho e para o Victor a academia foi mais um campo de tensão e conflito, um lugar onde ele se descobriu artista por não conseguir se encaixar no modo de pensar o ensino dentro de uma faculdade de arquitetura. Queria que vocês comentassem essa minha impressão e contassem um pouco sobre a experiência acadêmica de vocês.
V.T.: Nesses cinco anos de Universidade me parece que um aprendizado fundamental foi a constatação da ingenuidade (ou perversidade) de como a técnica é considerada instrumento neutro e não ideológico para a realização de projetos. Ficou claro de que tanto no curso quanto no campo da arquitetura e urbanismo não existe visibilidade para as discussões de raça, classe e gênero nos projetos arquitetônicos e paisagísticos. A prática do arquiteto não é compreendida como dispositivo de poder, que é utilizada como arma de controle sócio-espacial e que descarta sumariamente o conhecimento popular e as possibilidades de troca de conhecimentos. A partir do reconhecimento desta negligência, encontrei no campo da arte um espaço mais aberto para dialogar e construir pensamentos críticos que me auxiliassem na construção de projetos de arquitetura mais coletivos e que pudessem compartilhar experiências e proporcionar outras reflexões. Encontrei ainda o sentimento de partilha e pertencimento em disputas cotidianas contra a hegemonia de discursos opressores – machismo, LGBTfobia, racismo etc –, batalhas que estão há muito invisibilizadas dos debates arquitetônicos, e que só recentemente voltaram a compor pautas essenciais da formação do arquiteto urbanista.
B.O.: O desenvolvimento destes trabalhos em dupla se estabeleceu de forma paralela ao meu mestrado na Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA). Ficou evidente, durante o processo, a importância de uma investigação artística que pudesse articular de forma coerente a construção do debate acadêmico. Entretanto, isto também amplia o comprometimento requerido ao artista pesquisador para a construção de debates e poéticas que considerem a interdisciplinaridade como diretriz metodológica fundamental. Foi neste processo ainda que pude reconhecer a visualidade como um campo de disputas, tendo ainda como horizonte a constituição de outras gramáticas mais emancipatórias que façam ver imagens, narrativas e paisagens obscurecidas pelo ordenamento hegemônico da história e da arte. O que me parece fundamental, deste processo, é a necessidade de ressemantizar e recontextualizar as representações e projetos de mundo para repensar a visualidade e as diversas opressões que compõe este sistema visual - gênero, classe, raça, nação. Por isto a investigação acadêmica, de forma paralela, apresentou-se como uma oportunidade de complexificar e articular teoricamente questões que foram fundamentais para a prática artística.
M.M.: Vocês encontraram nos editais uma maneira de possibilitar os projetos de vocês. Queria que vocês comentassem sobre os editais que já participaram e quais as vantagens e limitações de trabalhar nesse contexto.
B.O. e V.T.: Enviamos projetos para diversos editais, e fomos contemplados em alguns como a Folhetaria do Centro Cultural São Paulo, Temporada de Projetos do Paço das Artes e Programa de Exposições do Museu de Arte de Ribeirão Preto. Para o nosso trabalho, cada edital é um exercício complexo de pesquisa e desenvolvimento, tendo em vista que tanto os estudos para jardins, a oficina botânica ordinária e os outros dispositivos propostos são contextuais. É necessário, para cada projeto uma outra pesquisa: mesmo que tenha resultados apresentados em espaço de cubo branco, acreditamos que não seja possível ser impassível às diferenças entre Palmas e Blumenau, por exemplo.
Esta foi, no entanto, conclusão que surgiu de longas discussões noite adentro, em filas de gráfica ou na busca por uma filial dos correios que fica aberta até mais tarde. Entendemos como uma grande vantagem as possibilidades dos deslocamentos e das elaborações de propostas contextuais, mas de fato a forma de operação dos editais é muito limitada. Usualmente as seleções são baseadas em critérios vigentes nos núcleos centrais de produção e circulação artística, assim como são baseados em escolhas por mérito, privilegiando artistas que se aproximam das expectativas do mercado consumidor ditado pelas instituições metropolitanas de arte...
M.M.: Vocês dois viveram parte de suas vidas fora de São Paulo. Esse fato impacta diretamente no trabalho? De que maneira?
B.O. e V.T.: Definitivamente. A vivência de paisagens não urbanas e não metropolitanas contribuiu (e contribui) de forma significativa para o reconhecimento de alguns padrões de representação dominantes, que projetam imagens exotizantes sobre territórios não centrais. A hegemonia de determinados discursos sobre os diferentes biomas e seus tratamentos também se torna objeto de nossas investigações, principalmente por assegurarem a estabilidade de determinados projetos de "desenvolvimento" e exploração dos territórios. Bom, nada de novo no fronte desde 1492, certo?
M.M.: A discussão sobre paisagem é algo muito antigo e presente na história da arte. Na produção de vocês como vocês pensam a noção de paisagem?
B.O. e V.T.: Nos interessa refletir sobre a paisagem como uma série de articulações contextuais, organizadas e condicionadas à determinadas perspectivas e projetos de mundo e que se torna presente e existe enquanto representação e discurso. Isto é, a paisagem é percebida na nossa produção como um dispositivo de poder capaz de trazer à luz ou ocultar determinadas experiências históricas, sociais, culturais, econômicas, sensíveis etc. Ainda mais especificamente, nos parece fundamental refletir sobre o processo de construção das paisagens latino-americanas, que se instauraram por um conjunto de ordenamentos visuais coloniais que tem início nos relatos, cartas e crônicas dos exploradores, conquistadores, pintores e cronistas que chegam à América a partir do século XV. Em algumas cartas enviadas à Europa, os viajantes do período afirmariam que as descrições dos costumes e riquezas das novas terras não seriam e não poderiam ser exatas, pois elas eram, até o momento, desconhecidas e, portanto, não haveriam palavras que pudessem ser utilizadas com precisão para tal tarefa.
O desafio destes exploradores era ainda o de elaborar uma narrativa sólida para legitimar e assegurar o domínio sobre as novas porções de natureza, sociedade e formas de produção. Entendemos, assim, que as paisagens que foram forjadas dos trópicos são fragmentos distorcidos de uma realidade desconhecida. Este Novo Mundo que se inventa no período das invasões constitui ainda hoje o imaginário do território latino-americano. Os trópicos exuberantes, fantásticos, sensuais, de natureza mítica e selvagem ainda constituem imagens coletivas das paisagens do sul. Por este motivo, por meio da investigação da construção desta visualidade, saber concebido que configura e ordena territórios e sentidos, nos parece ser possível disputar a legitimidade de projetos de paisagem a partir de suas representações. Outras paisagens são não somente possíveis, mas necessárias. Não apenas inverter as imagens do mundo e desestabilizaras representações hegemônicas, mas conformar e fazer ver outros entendimentos possíveis.
M.M.: Houve um momento que a prática mudou estruturalmente e as oficinas passaram a ser um procedimento colaborativo fundamental. Queria que vocês falassem sobre isso.
B.O. e V.T.: Durante uma residência no Vale do Pavão, em diálogo com outros e outras artistas, começamos a perceber que algumas das ordinárias habitavam algumas memórias de jardins afetivos das pessoas. São os casos da três quinas, cosmo amarelo e erva de santa luzia, que havíamos identificado inicialmente em Foz do Iguaçu. Acreditando que não existe um único jardim ordinário possível ou mesmo um procedimento específico de representação decolonial da natureza, mas diversas possibilidades de composição de outras paisagens, tramas e relações, começamos a considerar o ambiente da oficina e da troca de memórias e desenhos como uma oportunidade de aprendizado e de reflexão sobre tais potências. A oficina se apresenta como uma estrutura aberta e temporária tanto de investigações botânicas como de reflexão crítica sobre a paisagem, a arte e a hegemonia das representações. Cada realização da oficina constitui um pequeno herbário com fotografias, desenhos, gravuras, plantas e relatos dos debates que permearam as atividades. Assim, ao exercitar a construção coletiva de um acervo de naturezas e suas representações sob outras perspectivas, pretendemos apresentar imagens não especulativas e não hegemônicas, temporárias e situacionais dos diálogos e do próprio contexto de realização, a vegetação e a paisagem social e política circundantes. M.M.: Vocês podem explicar o projeto proposto para o Paço das Artes? Também gostaria de entender como foi para vocês a mudança de lugar da instituição, já que o trabalho proposto dependia de uma série de especificidades que se perderam com a mudança. Como vocês resolveram isso no trabalho?
B.O. e V.T.: O projeto da Oficina enviado inicialmente considerava a diversidade vegetal e histórico daquele território específico, e, neste sentido, era principalmente um laboratório sobre modos de representação botânica para hipóteses paisagísticas. A mudança tão significativa do Paço para o Jardim Europa, ainda mais no atual contexto político latino-americano, acabou por demandar uma série de mudanças na construção de sentido da obra. Para estes trabalhos, interessa, além de refletir sobre as paisagens menores e ordinárias, rastrear as reverberações de sistemas coloniais de visualidade e poder nas noções hegemônicas de paisagem e natureza. Tendo a paisagem como um objeto da cultura que é articulado a partir de determinados projetos de mundo, talvez seja possível identificar em alguns de seus elementos estas perspectivas discursivas.
Ao caminhar pelo Jardim Europa percebemos uma série de recorrências nos jardins e nos pareceu pertinente produzir um acervo de imagens do uso de plantas locais e exóticas no bairro com fotografias, desenhos e objetos. O exercício deste conjunto de trabalhos será desenvolvido processualmente durante o período da exposição e compõe uma breve trajetória (complexa e lacunar) das implicações políticas e simbólicas destes modelos de representação.
A mudança de local trouxe à superfície questões que, mesmo que estivessem no subtexto de outros trabalhos, ainda não haviam sido elaboradas de forma concreta: a necessária desnaturalização das imagens e narrativas da paisagem, bem como o alinhamento destas construções a sistemas de poder que supõe uma certa neutralidade não ideológica de suas construções.
Oficina botânica ordinária
Bruno O. e Victor Tozarin
Maria Montero
Maria Montero é curadora independente, artista e galerista. Cursou Art Psychotherapy na Goldsmith College em Londres (1998), atualmente estuda Arte: História, Crítica e Curadoria na PUC-SP. Trabalhou com Relações Institucionais na Galeria Luciana Brito (2009-2010), foi curadora da primeira versão do Red Bull House of Art (2009) e coordenou o projeto Abotoados Pela Manga, ao lado de Franz Manata (2010). Realizou diversas curadorias no Phosphorus, e outras em espaços parceiros (15 e Viva Maria na Luciana Brito Galeria, e Ana Mazzei - Se disser que fui Pássaro, na Galeria Jaqueline Martins). É fundadora e gestora do Phosphorus, espaço independente voltado para práticas experimentais, com foco em residências artísticas e na crítica dos processos. É fundadora e diretora da Sé, galeria de arte localizada no mesmo prédio que o Phosphorus, um imóvel histórico de 1890 localizado na primeira rua da cidade, no coração de São Paulo.