Na ponte mostra uma figura feminina em tons amarelados que nunca aparece se deslocando. A continuidade da ação é indicada apenas pela montagem de planos congelados. A metrópole apresenta-se imóvel, mas sons sugerem o trânsito. Dois componentes se integram: a passagem, acentuada pelos ruídos dos carros, e pura imobilidade. O sentido em que caminha a personagem nos escapa. Sua travessia parece nunca se encerrar devido também à estrutura do vídeo em loop, que impede uma narrativa convencional. O tempo é circular e, se houvesse um princípio, ele estaria emendado ao fim. Um precipício parece interromper a conclusão do curto trajeto da mulher.

Sobre o rio Pinheiros, uma ponte em ruínas, que liga nada a parte alguma, surge menos em seu sentido utilitário do que metafórico. Trata-se do próprio estado de mudança permanente. Fragmento que ainda resiste às forças do tempo, esse escombro se espreme entre outras duas pontes bem mais modernas. Legado de um passado recente, remete tanto à ausência de estabilidade das construções humanas quanto à sua insistente permanência. Esse pitoresco signo do transitório é um dos resíduos da nossa forçada e atropelada modernização.

Os últimos trabalhos de Gisela Motta, feitos a partir da fusão digital de sequências de fotografia e vídeo, trazem em seu interior um duplo aspecto: são estáticos e se movem. As poucas ações das personagens registradas em vídeo estão em sintonia com a fixidez dos cenários fotografados. As cenas totalmente paralisadas, as várias tomadas da câmera e os cortes das imagens marcam o ritmo da série.

Em outro de seus vídeos, a artista também apresenta uma edificação desprezada pela cidade: uma enorme casa abandonada. Nela, preso por grades de madeira, vive um estranho e absurdo personagem, uma figura decantada, como se fizesse parte do folclore e pertencesse ao nosso repertório. Trata-se de um velho com sobrancelhas tão longas que cobrem seus olhos e alcançam seus pés. A respiração ao fundo se aproxima da pulsação da própria casa, os suspiros da arquitetura e os seus se confundem, ou talvez não haja diferença entre eles.

Há uma ligação estreita, acentuada pelo tratamento da imagem, entre essas construções e as personagens. Na verdade, é como se houvesse uma identificação entre ambas, como se as personagens assimilassem aspectos inusitados dos cenários e os exibissem como atributos seus. Estas construções quase fantasmas, onde o mato vagarosamente se infiltrou pelas frestas, flutuam na memória da cidade. Verdadeiros monumentos ao tempo. Mesmo ignoradas e tornadas invisíveis, essas obras sobrevivem silenciosamente no tecido urbano. Indissociáveis das personagens, elas evocam uma parte esquecida e assombrosa da metrópole. Habitando nosso imaginário, pariam à espera de um olhar atento aos cacos de uma história ainda não escrita. 

Na Ponte

Gisela Motta

  • Na ponte (2003)
    vídeo em loop
  • Na ponte (2003)
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  • Na ponte (2003)
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  • Na ponte (2003)
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  • Na ponte (2003)
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  • Na ponte (2003)
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  • Na ponte (2003)
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  • Na ponte (2003)
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Cauê Alves

Cauê Alves (São Paulo, Brasil, 1977) é professor do curso Arte: história, crítica e curadoria, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É curador do Clube de Gravura do Museu de Arte Moderna de São Paulo e realizou, entre outras curadorias, MAM[na]OCA: arte brasileira do acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo (2006), a mostra Quase líquido, Itaú Cultural (2008) e Da Estrutura ao Tempo: Hélio Oiticica, no Instituto de Arte Contemporânea (2009). Atualmente está preparando uma exposição monográfica sobre Mira Schendel (2010) e será curador do Panorama da Arte Brasileira do MAM (2011) e curador adjunto da 8ª Bienal do Mercosul (2011).

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