Arlindo Machado
As artes da iluminação e da projeção nasceram há cerca de quatro séculos, com os teatros de luz de Giovanni delIa Porta e a lanterna mágica de Athanasius Kircher, embora já pudessem ser vislumbradas nas imagens transparentes e auto-iluminadas dos mosaicos bizantinos. O cinema não é senão o interregno mais conhecido dentro dessa longa história. Mas foram os artistas que souberam extrair todas as consequências do fenômeno do transporte da imagem através da luz e da dissolução de sua materialidade em pura energia e evocação. A natureza fantasmática da imagem projetada e as associações imaginárias deflagradas pelas imagens transparentes, as imagens atravessadas pela luz, possibilitaram à arte reconciliar a nossa produção iconográfica com as imagens mentais, o nosso "cinema interior".
No trabalho de Marie Ange Bordas, projeções e iluminações representam uma oportunidade para a artista evocar o imaginário, seja o dela própria, seja o do visitante ou o coletivo.
Ao entrar no ambiente obscurecido de Percursos/Vestígios, as únicas coisas perceptíveis para o espectador são as imagens transparentes e auto-iluminadas, que parecem flutuar no espaço vazio, sem corpo e sem peso, desafiando a lei da gravidade. Mas não se tratam de imagens facilmente reconhecíveis como réplicas do mundo visível. Essas imagens remetem mais ao interior, no duplo sentido do termo: muitas delas são radiografias de nossas próprias entranhas, outras evocações de nossas lembranças e imagens mentais. Mais que reeditar o dispositivo cinematográfico da projeção, o que de fato busca Bordas é construir a metáfora poética de outra projeção, aquela que se passa dentro de nós: a projeção imaginária da memória.
* Marie Ange Bordas foi artista convidada para a Temporada de Projetos 2000