Duas práticas incomuns ao universo da arte contemporânea, e em tudo estranhas à cultura brasileira tradicional, são convocadas por Lia Chaia para esta exposição no Paço das Artes: o tangram e a topiaria. Esta, na base dos jardins franceses e japoneses, é a arte de interferir na configuração das plantas e transformá-Ias em esculturas por meio de um processo de poda; aquela, surgida na China antiga, se baseia na combinação de sete peças geométricas, o que possibilita a criação de milhares de figuras distintas.
Em comum, ambas trabalham com a criação de imagens e objetos - possibilidades para o figurativo, o abstrato e o nebuloso campo de momentânea indefinição entre eles. Fauna se situa na confluência entre estas técnicas e no embate com questões muito próprias da trajetória da artista, particularmente o confronto entre natureza e cultura, que em suas instalações, vídeos e fotografias se manifesta não apenas por meio das fricções entre o indivíduo e a cidade, mas também pelo íntimo questionamento do mundo natural e dos desejos que nele projetamos.
Ao dar os primeiros passos no interior de Fauna, o visitante se descobre imerso em uma floresta constituída de elementos essenciais: vegetação, animais e sons de animais. Reconhecemos visualmente urso, pato, galo, urubu, canguru, peixe e coelho, entre outras espécies, e ouvimos sons que supostamente pertencem ao reino dos bichos, mas que na verdade são ruídos produzidos por um ator - alguns baseados em imitações de sons da natureza, outros simplesmente inventados -, em mais uma operação que se vale do natural para colocar em xeque noções de representação e verossimilhança. Neste caso, no campo da articulação entre o visual e o sonoro.
Adotado como elemento estruturador da paisagem, o uso que Lia dá ao tangram é genial. São as soluções matemáticas apresentadas por ela em forma de animais que nos permitem enxergar o mundo natural numa espécie de fusão carnal, conflituosa e inexplicável, entre a racionalidade da geometria e a coisa vegetal, intensa, orgânica e sensorial da selva. As esculturas de Fauna remetem aos Metaesquemas de Hélio Oiticica, aos Bichos de Lygia Clarke também aos jardins modernos de Burle Marx - nestes três casos, tanto por seu aspecto formal quanto pelas possibilidades libertárias que se oferecem a cores e formas.
Dialogam também com a pintura Le Blanc-Seing (Assinatura em Branco), de Magritte; com a instalação Tropicale Modernité, de Dominique Gonzalez Foerster; com a videoinstalação Que É De?, da dupla Leandro Lima e Gisela Motta; e com as projeções Pinturas de Luz, de Albano Afonso, entre tantas aproximações férteis e possíveis.
As sete peças (os tans) são cinco triângulos de diversos tamanhos, um quadrado e um paralelogramo. Em cada formação, todas devem ser usadas e não é permitido sobrepor. A escolha de Lia não é aleatória, claro, e vem carregada de sentidos. O mais evidente está no paralelo possível com a arte e seu sistema. Trata-se de um jogo com regras claras e invioláveis - no limite, possuidor de uma linguagem própria.
Contudo, uma vez dominada sua gramática (formal, estrutural e combinatória), infinitas possibilidades se apresentam, e ali podemos nos movimentar à espera de uma experiência que será única. Na arte como no jogo, é imprescindível a participação e é necessário, ainda, que o outro domine os mesmos códigos, a fim de ter consciência das particularidades e dificuldades deste universo situado entre a ficção e a realidade.