Imagem da exposição "A história dos nossos gestos", de Haroldo Saboia
Imagem da exposição "A história dos nossos gestos", de Haroldo Saboia
Imagem da exposição "A história dos nossos gestos", de Haroldo Saboia
Imagem da exposição "A história dos nossos gestos", de Haroldo Saboia
Imagem da exposição "A história dos nossos gestos", de Haroldo Saboia
Haroldo Saboia
Haroldo Saboia é natural de Fortaleza, no Ceará. Artista visual, ele também atua como fotógrafo profissional de cinema. Enquanto artista, pensa sua atuação enquanto construção de um campo, partindo da ideia de sujeito como linguagem; desta como matéria própria do humano. Sua pesquisa se concentra nos atravessamentos entre as imagens e as palavras e na compreensão de que ambas são ficção e narrativa, conduzindo, portanto, a literatura, as viagens e os percursos físicos e históricos como espaço processual de trabalho e também como matéria-prima para a criação de suas ficções, suas coletas sensíveis e seus procedimentos de arquivar e editar imagens do mundo. Numa vontade de articular ensaio memória e relato. Atualmente, pesquisa através do cinema e da dança a relação entre as imagens históricas, os gestos mínimos e o quanto esse atravessamento é capaz de criar uma memória coletiva nos corpos. Quais gestos se mantêm em nossos corpos? E assim, busca afirmar esta memória do mundo, que é sempre ficcional.
Ana Maria Maia
Abaixo, a entrevista de Haroldo Saboia para a crítica Ana Maria Maia sobre a mostra "A história dos nossos gestos".
Ana Maria Maia: Você me relatou pelo menos dois elementos que impulsionaram o início do projeto – a foto do operário tocando a mão da estátua de Juscelino Kubitschek no memorial feito em homenagem ao ex-presidente em Brasília e o livro de Câmara Cascudo, que, embora não apareça como citação direta nos trabalhos, dá título à mostra. Como você se posiciona em relação a esses documentos históricos? O que entende de seus enunciados originais e a que os conecta nessa nova narrativa?
Haroldo Saboia: Todo este trabalho surge de meu encontro com a imagem do operário que toca a mão da estátua de JK em um livro sobre a construção de Brasília. Fui atravessado por uma força simbólica que dela emanava. Com o braço esticado e o corpo estirado sobre um plástico escuro que a protege, a estátua apoia a mão do homem sob o sol a pino de Brasília, criando um certo apagamento sobre seu rosto. Um homem se relaciona com a imagem de outro homem. O desacordo das mãos, a diferença dos corpos que exercitam esse contato estranho, o pacto silencioso instaurado naquele instante, desmedido, me gerou melancolia logo após o espanto inicial de encontrá-la.
Apesar da assimetria entre ambos os personagens, seu encontro leva a crer em uma ideia de reconhecimento do trabalhador anônimo pelo homem mítico, do indivíduo comum pelo político celebrado e monumentalizado. Também acho importante estar atento para o fato de que essa fotografia não é uma imagem oficial da história. É apenas uma “nota de rodapé”, um instante capturado por alguém, um gesto pequeno que ficou para trás.
Sobre Câmara Cascudo, sinto que é necessário contextualizar: o livro foi lançado em 1974, dez anos após o golpe militar brasileiro. Trata-se de uma compilação de 333 verbetes escritos ao longo de vários anos com o intuito de, segundo o autor, catalogar os gestos “observados no Brasil”. Cascudo reuniu as especificidades do gesto enquanto linguagem, de uma corporalidade correspondente às experiências de vida no país, mas atravessada pela literatura, pelos mitos e por referências de uma história “universal”. Desse modo, me parece difícil pensar essa espécie de dicionário como um documento histórico, o entendo mais como um exercício ficcional e de imaginação, feito a partir do olhar atento do autor para as especificidades. Me interessa essa ambiguidade e esse trânsito entre objeto histórico e objeto ficcional.
AMM: Esta é a primeira exibição do projeto "A história dos nossos gestos", que você entende como um dispositivo para se pensar uma memória iconográfica à luz de uma política de afetos. Por que escolheu começar com esse olhar sobre Brasília, da construção nos anos 1950 ao memorial de JK já em 1981?
HS: A escolha de Brasília se deu inicialmente pela força da imagem encontrada, mas logo pareceu inevitável, não apenas devido ao significativo momento político que vivemos hoje, mas também pelo gesto que a capital carrega desde a fundação, quando se quis imaginar um “país do futuro”. Devido à sua monumentalidade, Brasília aciona um a imaginário superlativo, ufanista, conectado com um ideal civilizatório de um Brasil moderno. A capital postula as dimensões do macro, e, com isso, me ajuda a formular uma oposição, uma vez que me proponho a atentar para o menor, para a escala do corpo e do indizível.
Lembro do filme de Joaquim Pedro de Andrade, "Brasília, contradições de uma cidade nova" (1968). Quando o diretor perguntou para um operário da construção civil se ele continuaria na cidade após o trabalho, ouviu a resposta de que não continuaria, porque “Brasília não é para o operário”. Assim, contraditoriamente, fruto da euforia e da vocação construtiva moderna, Brasília rapidamente se transformou em instrumento panóptico de vigilância e opressão. Embora carregue a melancolia de um pacto de “integração nacional” que nunca se constituiu, a imagem do operário com JK também pressupõe uma inversão de poder, apresentando o operário na centralidade de seu desejo e gesto. Gosto de imaginar que, naquele instante da fotografia, pode ter ocorrido uma experiência sensorial libertadora e a tão esperada “integração”, também pelo ponto de vista do cidadão comum.
AMM: Tanto o toque das duas mãos (operário e Kubitschek) quanto o pronome “nossos”, tomado de empréstimo de Cascudo, indicam um desejo de coletividade e pertencimento. O que pode representar a ideia de “nós” em enunciados oficiais, principalmente quando formulados em contextos desenvolvimentistas como o da construção de Brasília? Como o seu trabalho busca tensionar esses referentes, suas agências, políticas e afetos?
HS: Em contextos oficiais ao longo da história, os sentidos de “nós” ou de “nossos” costumam ser contaminados por vários matizes políticas de acordo com quem conta a história, não raro o poder instituído. No entanto, o meu entendimento do “comum” está sujeito à linguagem, suas premissas e usos. Entendo que é na linguagem e por meio dela, portanto, que se constrói um lugar de partilha, comunidade e transmissão, a partir de uma escala sempre humana. Desse modo, assim como as palavras e as imagens, compreendo o gesto como um lugar de encontro e imaginação. Parafraseando Cascudo, “o gesto é a comunicação essencial, nítida e positiva... ‘Aprende... o segredo dos gestos expressivos”. Para mim, investigar a história do Brasil por meio do gesto é também tensionar a história da linguagem. Assim, penso que não há a priori nessas imagens um suposto corpo comum. Talvez ele se constitua a partir do que tento realizar na exposição, à medida que crio narrativas e vizinhanças entre esses gestos silenciosos e transitórios.
AMM: Na construção desse imaginário de Brasil, identidades e perspectivas individuais coexistem com tentativas de sedimentar uma identidade nacional, capaz de designar o que seriam o país, características e grupos representativos (geralmente vencedores) em sua história. Como você procurou lidar com essa polaridade e confrontar discursos pela identidade nacional na edição das imagens e nas escalas de montagem do espaço expositivo?
HS: O trabalho usa o recurso da escala para pontuar diferenças entre o gesto comum, ordinário, inscrito no tempo e na vida, e o gesto mítico, hercúleo, o gesto da história. Na mostra, obras grandes em tamanho são empregadas para abordar gestos pequenos. A compilação desses gestos em coleções ou sobreposições indicia e faz imaginar um espaço-temporal de experiência. A mostra contém ainda imagens de temporalidades distintas. O trabalho Integração Nacional (2019) é composto por uma coleção de 76 imagens realizadas entre 1958 a 1981. Do enquadramento original, foram recortados apenas detalhes que destacam as mãos em atividade. Nos deparamos com mãos que bebem, que martelam uma madeira, que estão segurando uma placa, que protegem o rosto do sol, que dividem uma muda de planta, que seguram a cabeça em momento contemplativo, que tocam a porta do carro, mãos em riste no ar, mãos que pressionam outros braços, que acenam, que apontam, que perguntam. Sem nenhum rosto aparente, a edição não revela identidades, apenas um grande mosaico de ações. O resultado é uma tipologia do fazer, protagonizada pelas mãos. Walter Benjamin escreveu que o sonho faz parte da história. Gosto de pensar que as mãos também fazem parte da história.
AMM: Na sua trajetória, o corpo é articulado como ferramenta para questionar os mecanismos de controle que podem ser incutidos nas imagens e nos discursos históricos. A mão, o movimento e a experiência tornam-se alternativa a um conhecimento puramente mental ou, no máximo, retiniano. Que tipo de abertura ou suspensão os gestos mínimos e cotidianos proporcionam à sua pesquisa?
HS: Penso que, de algum modo, as coisas começam e terminam no corpo. Entendo o corpo como uma unidade composta de atravessamentos históricos, mas também dotado de vocabulário próprio, autônomo, como um espaço inapreensível. Há na exposição um pequeno trabalho intitulado Didática do Contato (o espaço ensina o que a mão e o chão sabem) (2017). Ele é ao mesmo tempo uma pergunta e uma assertiva. Posiciono sobre os quatro cantos da sala esculturas de mãos que evidenciam uma ação e delimitam um espaço. O que se aprende neste contato entre mão e chão? O contato é encontro, produz rastro e, portanto, memória. Penso que a arte também se dá nesse encontro, no efeito das coisas sobre as outras, não nas coisas em si. Basta um gesto sobre as coisas para que algo pesado se torne leve; uma linha se converta em volume; uma imagem se torne espaço; uma palavra, imagem. Penso a relação arte e vida por meio de um gesto de rearranjo, que escreve o mundo, mas também reescreve a própria subjetividade de quem faz.
Ao me apropriar de imagens históricas e o reenquadrá-las, à revelia dos discursos oficiais, busco abordar a história como lugar de construção, narrativa não-linear e fragmentada. Acredito que pequenos gestos são capazes gerar grande energia e, assim, promover reverberações de grande impacto e intensidade e, por sua vez, rupturas.
AMM: Você costuma colaborar em processos de criação em dança. O que essa linguagem traz para a sua pesquisa sobre imagem e história?
HS: Sim, há algum anos tenho me interessado por dança e performance e feito colaborações com artistas como Patrícia Bergantin, Leandro Berton, Cláudia Muller, Clarice Lima, Cristian Duarte, Júlia Rocha, Clarissa Sachelli, Bruno Levorin, dentre outros. Essas parcerias permitiram pensar imagem, montagem, narrativa e dramaturgia em dança. Conseguimos perseguir formas de imagens existirem no espaço e aprender com a imaterialidade própria do gesto. Isso que é tão bonito da dança eu procuro empregar nas minhas pesquisas sobre a linguagem e a história. Para uma obra em dança existir, é necessário construir memória no corpo, aprender. É preciso um tempo de vivência e elaboração. Pretendo desdobrar em dança no futuro a pesquisa que iniciei na Temporada do Paço das Artes.
AMM: Agora, no primeiro ano de um novo governo federal, diante de incertezas institucionais e do anúncio de desmonte de uma série de políticas públicas de inclusão social, evocar um imaginário de integração e inclusão torna evidente uma profunda distopia. Dito isso, reformulo e te devolvo uma pergunta que você colocou no projeto inicial dessa mostra: o que podemos aprender com esses gestos do passado e, sobretudo, com sua falência estrutural no presente?
HS: É uma pergunta que permanece no gerúndio, pois não tenho uma resposta clara pra esse momento. O imaginário de integração nacional é retomado pelo mandato recém-iniciado dos discursos à propaganda. A marca da gestão sugere um “novo sol” que surge no horizonte. Todo começo pressupõe um fim. No entanto, o que há claramente, para mim, é uma sensação de perda. Ao tentar repensar os grandes gestos, as grandes narrativas, o meu trabalho critica este messianismo, o papel do “salvador” presente no imaginário político brasileiro. Procuro refutar a premissa de que um único homem seria capaz de dar conta dos desejos individuais, de uma saída milagrosa para os problemas do Brasil. Imagino que a história de Brasília podia ter sido uma história dos operários que a construíram, do não apagamento dessas histórias individuais, desses pequenos gestos, e não apenas a história de figuras como JK e dos presidentes que o sucederam, entre eles o atual.
Apesar disso, busco construir uma ideia de presença e, a despeito deste olhar para trás, para a história, todo gesto é realizado no presente. Há uma ideia bonita de Maria Filomena Molder, filósofa portuguesa de quem gosto muito. Ela diz algo como: “primeira regra: continuar. Segunda regra: começar... Onde eu estava a começar, estava a continuar. Nós só começamos depois de continuar”. Muitos gestos vieram antes dos nossos. Há algo que persiste na política brasileira e internacional, com alto grau destrutivo e desmobilizante, que ainda não compreendemos totalmente. No entanto, ao pensar que a arte opera por um plano de imaginação e liberdade, há talvez também presenças, subjetividades e histórias menores que é preciso ainda encontrar e nomear para que também possamos começar novamente.