Epitáfio para Isopor pode ser entendida como uma opereta sem canções. Ou melhor, uma pantomima, por convocar uma gramática gestual de domínio comum. No projeto de Débora Bolsoni, apresentado na noite de abertura, o público acompanha a encenação por meio de um libreto. Porém não encontra ali um texto poético em consonância com a narrativa que acontece ao vivo, mas simplesmente imagens que reproduzem o comportamento dos intérpretes – ícones que buscam resumir cada um dos atos (com títulos como Cortejo e Montagem das Bobinas; Atadura e Doação, Bailado e Tapete com Calda). O percurso criado por essas fotografias reforça a ideia de procedimento, de modo de operar no mundo (um lugar compartilhado por outros nomes da geração de Débora, particularmente Rodrigo Matheus e Laura Husak Andreato).
Tudo parece se dar em torno das práticas do cortejo fúnebre (no que lembra uma peça de Tadeusz Kantor e sua discussão do conceito de inanimado, pela via do embate entre performers e objetos de cena). Um ritual simbólico, cuja arquitetura e design se baseiam na iconografia da indústria alimentícia, especialmente a confeitaria, aqui encenada com materiais de papelaria, em que prevalece o ato de “embrulhar”, “empacotar” (neste caso, com duplo sentido, ligado à ideia de morte). Não é por acaso a opção pelo universo dos doces de enfeite, uma vez que, no corpo de trabalho da artista, glacê e demais elementos ornamentais são tratados como “matéria morta”. A todo instante o espectador é submetido à tensão entre a ideia de adereço e excesso barroco, de um lado, e um vocabulário visual reduzido ao limite, de outro – a impressão é de estarmos diante de uma homenagem fúnebre a uma forma minimalista.
Assim como o dramaturgo polonês, Débora investe na criação de uma ambiência própria, que ela povoa com alguns “personagens” – figuras que estão se tornando emblemáticas de seu imaginário, caso da bobina móvel de papel. Como se objetos nos fundos de um almoxarifado fossem subitamente animados e, decididos a não mais executar suas tarefas da mesma maneira, partissem para uma ação conjunta no sentido de reinventar seus usos e funções.
Neste sentido, Epitáfio para Isopor se alinha às discussões recentes em torno do conceito de reenactment (reencenação) na arte contemporânea. No caso, se reencena não apenas o teatro de Kantor ou parte da história da ópera, mas também procedimentos gerais presentes no inconsciente coletivo – além de certa sensibilidade e particular ocupação do espaço já anunciadas em projetos anteriores da artista. Na verdade, a plataforma da qual Débora se vale é construída, em grande parte, pelo uso de elementos do passado recente: o bloco de isopor foi visto na individual do Centro Cultural São Paulo (2005), em um canto, como se esquecido por algum funcionário, uma sobra de processos de produção. Batizado por ela de Bloco Reserva remetia, nas suas palavras, à “lembrança da natureza das coisas sem uso”. Posteriormente esta peça foi ativada: retirada de sua embalagem plástica e colocada na vertical. Intitulada Degelo, ocupou o que seria o espaço convencional para uma geladeira na instalação Mudança de Lugar (galeria Marília Razuk, 2007). Agora, no Paço, o mesmo bloco retorna, citando tanto as lápides de mármore criadas pelos escultores renascentistas quanto uma escultura minimalista.
Neste momento em que assistimos ao renovado vigor e à grandiloquência da crítica de arte conservadora – capitaneada por Ferreira Gullar e Afonso Romano de Sant’anna, além de seguidores de menor expressão – o projeto de Débora Bolsoni ganha inesperada e contundente dimensão crítica, configurando-se em uma possibilidade de réplica, carregada de ironia e bom humor, àqueles que reclamam por manuais para o acesso à arte de hoje. Porém, a cartilha oferecida pela artista não se presta ao didatismo fácil e ao alinhamento com o cânone que aqueles reivindicam. Epitáfio para Isopor investe em relações mais complexas, na possibilidade de múltiplas portas de acesso, além de colocar em perspectiva toda a história da performance e seus conflituosos diálogos com a narrativa.