Ana Hupe

Rio de Janeiro, 1983

  • Foto: Pablo Hassman
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Ana Hupe

A pesquisa de Ana Hupe localiza-se na fronteira entre escrita e artes visuais, e atravessa situações sociais ligadas a práticas de descolonização e fluxos migratórios, reunindo uma contramemória do arquivo colonial. É doutora em artes visuais pela UFRJ (2016) e fez um ano de pesquisa na Universität der Künste (2015), Berlim, com co-orientação da artista Profa. Dra. Hito Steyerl.  Em 2016, fez Leituras para mover o Centro, no CCBB-RJ, exposição parte do Prêmio CCBB de Arte Contemporânea, e (Re)leituras para mover o centro, no Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica. Em 2015, fez as individuais Bordas borradas bordões borrões, na Portas Vilaseca Galeria, Rio de Janeiro, e na SP-Arte; e Entrelinha, com curadoria de Julieta Roitman, no Parque das Ruínas, Santa Teresa, FotoRio 2015; e, em 2014, O Verso, com curadoria de Bernardo Mosqueira, na galeria Ibeu, Rio de Janeiro.

Juliana Gontijo


ENTREVISTA COM ANA HUPE

Juliana Gontijo


Juliana Gontijo: Como Malungas continua o projeto Leituras para mover o centro?

Ana Hupe: O projeto Leituras para mover o centro partiu de uma relação minha com a literatura, como forma de me colocar no lugar do outro. Estava numa residência na África do Sul quando descobri, numa coletânea de contos de escritores africanos e afrodescendentes, um conto da escritora brasileira Conceição Evaristo. A história do conto ocorre num ônibus que vai da zona sul do Rio de Janeiro para uma favela na periferia. Uma empregada doméstica levava frutas que tinha ganhado da patroa para os dois filhos pequenos. Um homem assalta o ônibus, rouba a todos, mas ela reconhece nele o pai do seu filho mais novo e ele não a assalta. Quando o ladrão foge, as pessoas do ônibus a violentam, porque a consideram cúmplice. É uma história terrível, como muitos contos da Evaristo. Não conhecia, naquela época, nenhuma escritora negra brasileira e fiquei pensando em como somos doutrinados desde uma perspectiva europeia, branca e masculina. Como estava na África do Sul vivendo uma experiência de desigualdade extrema entre negros e brancos, essa descoberta funcionou como uma quebra de paradigma nas minhas relações sociais. O fim do apartheid é muito recente, e a discussão constante sobre a descolonização atua lá como uma cura coletiva, enquanto aqui, no Brasil, se fala pouco da necessidade de nos libertar do inconsciente colonial, e o racismo é algo muito velado. 

Leituras para mover o centro partiu, então, de um desejo meu de entender quem são as escritoras negras brasileiras e que tipo de literatura escrevem. Reuni vários livros publicados por africanas e afrodescendentes brasileiras a partir de encontros com imigrantes africanas moradoras do Rio de Janeiro, às quais perguntava qual sua relação com a literatura e se essa literatura era um lugar para descolonizar o corpo.
 
Muitas me trouxeram livros que acreditavam ser representativos do lugar de sua origem, como os de Cheikh Anta Diop, um dos escritores mais reconhecidos do Senegal. Comecei a entender um pouco mais da literatura de cada lugar a partir dessas mulheres, porém percebi que esse tema era difícil de abordar, porque a maioria delas não tinha uma relação com a literatura. Tudo passa pela oralidade: as histórias são orais, e as conversas que tínhamos sempre iam para um lugar muito além da literatura. Em Malungas, portanto, decidi abandonar essa pergunta, embora o projeto ainda conserve uma relação com a literatura: para cada mulher que fotografo, construo uma história não linear e bastante aberta, a partir de recortes de livros. Além do mais, quis trabalhar a questão da latino-americana na Europa e não apenas da mulher negra imigrante, pois eu mesma vivo numa itinerância entre Alemanha, Brasil e vários outros lugares. Na minha vida na Alemanha, há a presença eterna do casamento como uma forma de obter um visto para permanecer no país legalmente e estou sempre ajudando com traduções ou sendo testemunha, é quase um ativismo.

JG: O Afrofuturismo é uma referência estética e conceitual para ambas as propostas. Como ele atua nesse contexto de imigração e descolonização dos corpos?

AH: O Afrofuturismo sempre foi usado como uma arma, como uma estratégia estética e política da diáspora africana dos Estados Unidos para se tornar visível e demonstrar seu poder. Essa forma artística não olhava a história de modo linear, mas sim como acontecimentos perpendiculares. O Afrofuturismo transforma passado, presente e futuro num cometa, como se tivéssemos só o tempo presente. Em Leituras para mover o centro, brinquei com essa ideia de futuro desde uma estética bem artificial, cheia de LEDs e produtos chineses, mas quis trabalhar só com o preto e o branco em Malungas. Diante de uma fotografia em preto e branco, perdemos uma noção linear de espaço-tempo, principalmente se a fotografia tiver a granulação do analógico: ela pode ser tanto de 1920, como de 2050. Os tempos se misturam. Imaginei um futuro em preto e branco, em vez de um futuro de cores cibernéticas. 

Como referência para os retratos, usei as cartes-des-visites do fotógrafo alemão Albert Henschel. Ele havia sido contratado pela corte portuguesa no Brasil como fotógrafo oficial por volta de 1850, e usava técnicas semelhantes às que utilizava para retratar a corte para fotografar negros escravizados em seu estúdio, numa tentativa não só de documentá-los, guiado pelo exotismo, mas também de enaltecê-los como sujeitos. Ele usava uma câmera fotográfica com quatro lentes objetivas, que permitia, num mesmo negativo, obter quatro fotografias independentes e produzir, assim, um número maior de cartões de visita.

Adaptei a técnica e usei uma máquina Lomo, inspirada no modelo usado naquela época, por ser mais barata e fácil de conseguir. Outras técnicas antigas, como a do fotograma, por exemplo, me permitiram, novamente, explorar um anacronismo temporal. O processo, que data do princípio da fotografia (aproximadamente 1850) é lentíssimo: a cada foto, eu precisava permanecer trinta minutos num quarto escuro. Nesse projeto, entrei de fato num outro espaço-tempo. Espero, portanto, que a exposição traga essa confusão temporal.

JG: Essa relação entre técnica, estética e conceito rompe também com a ideia de progresso tecnológico.

AH: Sim, permite construir uma ideia de futuro sem usar o digital – apesar dos vídeos, claro. Para dar a impressão das fotografias flutuarem na parede, usei apenas prego, ímã e metal, coisas muito simples e totalmente analógicas. Particularmente, estou cansada de viver nessa percepção “digitalizante” e, por isso, tentei vivenciar um tempo expandido na realização deste projeto.

JG: O que você chama de “mulheres do 4º mundo”?

AH:
Para mim, as mulheres imigrantes vivem num outro planeta, que chamei de “4º mundo”. Não é uma nação, porque quero quebrar essa ideia de Estado-nação. Depois de pensar esse nome, soube que, na antropologia, há um conceito denominado “3ª zona”, para essas pessoas que não pertencem mais ao lugar de onde vieram e nunca serão do lugar onde estão. É o limbo imigrante. Atualmente, é constituída por aproximadamente 65 milhões de pessoas que moram fora de seu lugar de origem. “Mulheres do 4º mundo” não tem, portanto, nada a ver com a ideia de “países do 3º mundo”.

JG: Ao conversar com essas mulheres que compõem o projeto, latino-americanas em Berlim e africanas em São Paulo, você se deparou, igualmente, com uma espécie de utopia da imigração, que também vai além das configurações de passado, presente e futuro. Como essas projeções de futuro se combinam no seu trabalho?

AH: Essa utopia relacionada à imigração não é muito nova para mim, pois, pessoalmente, eu a vivi anos atrás, quando passei um tempo dividindo uma casa com muitos imigrantes brasileiros em Londres. As pessoas iam para lá imaginando pular numa piscina de dinheiro, mas chegavam e viam que era muito mais difícil do que esperavam, e algumas até entravam para a prostituição. Então, desde essa época, penso na imigração como uma utopia falida. Mas, em relação às africanas que vêm para o Brasil, talvez a imigração não seja uma utopia. Não há uma quebra de expectativas; elas encontram o que esperam. A impressão que tenho é de que, por mais que seja difícil a questão do emprego, estão gratas por estarem aqui e se sentem em casa, pois encontram um país com clima semelhante e com uma boa herança africana. Bem, isso é o que elas me dizem, mas talvez a realidade seja outra que preferem não expor. Talvez seja uma questão de diferença cultural, e elas estão apenas sendo educadas comigo, por eu ser brasileira. A comunicação entre nós sempre foi difícil, escorregadia. As mulheres imigrantes, tanto no Brasil quanto na Alemanha, precisam de espaço na sociedade. Elas não têm total domínio do sistema de organização social, do sistema semiótico ou da cultura, porque vêm de outro lugar e não conseguem trabalho. Se lhes for dada a oportunidade, têm muito a contribuir para uma verdadeira miscigenação.

JG: Na segunda parte do projeto, você exibe dois vídeos lado a lado: no primeiro, latino-americanas em Berlim leem e comentam trechos dos diários do cientista alemão Georg Heinrich Langsdorff; no segundo, africanas e afrodescendentes em São Paulo leem e comentam trechos da Biografia e narrativa do ex-escravo afro-brasileiro Mahommad Gardo Baquaqua. O que faz com que você coloque, lado a lado, essas duas situações de imigração, tão diversas? E qual o papel do texto em tudo isso?

AH: O texto, novamente, é um ponto de partida para pensar a condição da mulher imigrante. Tanto nos escritos de Baquaqua, que foi escravizado na África e veio para o Brasil em 1840, como nos de Langsdorff, alemão que veio para cá como explorador em 1815, as mulheres não se sentavam à mesa junto com os homens e não podiam participar das discussões. Apesar de significativas mudanças, esses escritos de duzentos anos atrás permanecem atuais. O papel da mulher na sociedade que os trechos escolhidos enfocam ainda está muito subjugado. Além disso, a relação dos dois fluxos imigratórios ocorreu, porque estou tentando construir uma triangulação entre Europa, Brasil e a África contemporânea. Nossas heranças culturais são de uma outra África, não dessa África de hoje. 

Nessa atualidade, o que a gente vê como precário, na verdade, é um laboratório de futuro. Desde uma ideia de epistemologia do sul, lá, como aqui, encontramos formas de se organizar que respondem ao mundo em crise de forma mais direta que a “ocidental”. Entendo que colocar as imigrantes latino-americanas ao lado das imigrantes africanas seja arriscado, já que as realidades são tão díspares. Os problemas das latino-americanas na Europa parecem “Luxusprobleme”, como dizem os alemães, se comparados aos que as africanas enfrentam aqui. A potência dessa escolha talvez esteja em sugerir que um visitante de uma exposição de arte contemporânea do Paço das Artes também poderia estar nessa situação de imigração. É uma forma de aproximar as histórias de vida. Essa é a minha expectativa, mas não sei qual será a leitura.

JG: Em vários momentos, você relaciona imigração e trabalho. E, para fotografar as latino-americanas em Berlim e as africanas em São Paulo, você ofereceu dinheiro. O dinheiro entra para simplificar uma relação de comunicação entre partes ou como indício de capitalização dos corpos?

AH: O dinheiro é muito importante em Malungas. Quando fiz Leituras para mover o centro, não paguei pela participação das mulheres que entrevistei; queria pessoas interessadas pela ideia do projeto e fazia questão de explicar, para cada uma, todos os seus detalhes. A pré-produção então foi um processo longo e intenso. Enfrentei, porém, uma situação difícil com duas haitianas que haviam concordado em participar. Fui até a Cidade de Deus, onde moravam. Elas não falavam nem português, nem francês. Havia um tradutor da ONG Viva Rio acompanhando, mas a comunicação, mesmo assim, era muito fragmentada. Quando pedi a autorização para usar o material da entrevista, elas disseram que só autorizariam mediante pagamento. E eu não tinha dinheiro comigo ali, naquela hora. Além disso, estava com aquela ideia romântica de um envolvimento afetivo com o projeto. Disse a elas, então, que não usaria suas imagens, pois não estava em condições de pagar e não queria também comprar histórias. No entanto, saí de lá pensando que deveria ter pago essas mulheres. Fiquei horas nas casas delas, elas estão desempregadas, e isso é um trabalho. Se estou usando a história do outro, tenho que pagar por isso, mesmo que seja um valor simbólico, que é o que o projeto pode pagar. Em Berlim, foram dez euros; em São Paulo, setenta reais. 

A segunda razão para o uso do dinheiro é que eu não pude fazer uma pesquisa de campo prévia, explicar individualmente o projeto e, assim, construir uma relação com as mulheres imigrantes. Portanto, a sessão de fotografias e entrevistas é oferecida diretamente como um trabalho: se quer, quer; se não quer, não quer. Dá mais claridade e simplifica. Vieram tantas mulheres na primeira sessão de fotografias que tive que abreviar o tempo de trabalho com cada uma delas, para não deixá-las muito tempo esperando. Foi muito rápido, mas foi como aconteceu: um contrato de trabalho. Estou, portanto, bem segura quanto a essa decisão de pagar pela participação de cada uma.

JG: Em relação a essa discussão iniciada com as imigrantes, como o projeto poderia ultrapassar uma relação contratual para dar abertura a uma consciência de descolonização dos corpos?

AH: É difícil responder a essa pergunta, porque um projeto assim nunca é suficiente para descolonizar ideias e pessoas. Espero apenas ter contribuído. Com algumas das mulheres que entrevistei, o projeto ultrapassou o contrato de trabalho; com outras, não. Em muitas, o projeto desconstruiu a ideia de trabalho que tinham. Já não havia uma obrigação ou tarefa específica, deviam só contar suas histórias. Algumas angolanas, que já tinham imigrado dentro do próprio continente africano e eram chamadas de Langa por falarem várias línguas, entenderam melhor o projeto e, então, conversamos mais profundamente. Elas sofriam preconceito dentro do próprio país e contribuíram com histórias que serviram para pensar os fluxos imigratórios e a desconstrução do lugar do imigrante como alguém inferior.

JG: Minha pergunta anterior não vai no sentido de pensar o artista como responsável por “abrir os olhos” de um segmento da população que ele considera “outro”, mas no sentido de proporcionar, naquele momento, um espaço de autorrepresentação. A partir de que ponto esse instante de elaboração de uma expressão própria pode sair de algo mecanizado para ser um ato de elaboração de uma subjetividade e de um agenciamento próprio de discursos?

AH: Muitas vezes, durante as entrevistas, percebi um discurso autoral, no qual elas se pensavam na condição de imigrante. Isso aconteceu em alguns momentos, mas não com todas as entrevistadas, porque nem sempre havia um idioma em comum e a comunicação não era fluida. Senti que estavam felizes por estarem tendo algum espaço de expressão. Sei que tenho alguma responsabilidade sobre a imagem dessas mulheres, mas também não tenho poder algum. Esse trabalho não vai mudar a vida de ninguém, tenho consciência disso. Eu me questionei em vários momentos se estava usando essas mulheres para fazer um trabalho de arte, e o que isso iria trazer de volta para elas. Porém, acho que a organização da sessão de fotos ativou uma rede, na qual uma imigrante mais antiga trazia uma recém-chegada, e isso talvez tenha despertado uma consciência de coletividade que pode ajudar na inserção social delas.

JG: Na desconstrução do discurso colonial, o “falar pelo outro” e a criação de um esquema de representação se tornaram problemáticos. Já somos parcialmente conscientes dessa impossibilidade de representação, por sempre se tratar de um discurso de autoridade. Nesse sentido, é interessante como, no terceiro conjunto de obras da exposição, você se integra ao grupo de imigrantes que busca retratar e se expõe, como num diário íntimo, na frágil condição de um corpo escravizado.


AH: Senti necessidade de abordar a imigração de uma perspectiva mais pessoal, porque é difícil falar da cultura africana não sendo negra e é no lugar de imigrante que me encontro com as africanas. Nessa parte do projeto que você menciona, o áudio que escutamos foi gravado como num programa de rádio ao vivo, num aparelho de tape reel de 1964: leio um texto que escrevi sobre minha experiência de trabalho no sistema alemão, e Manuela Morales, curadora e diretora da Gallery Mario Kreuzberg, onde fiz a primeira parte da exposição, em Berlim, me faz perguntas sobre a relação do uso do corpo do imigrante, do escravo e do trabalhador. Os fotogramas que acompanham o áudio utilizam uma técnica fotográfica antiga para falar, também, dessa relação entre trabalho e imigração. 

A estética da sobrevivência na Alemanha me colocou na situação de cuidar de uma cadeirante, e eu me descobri extensão do seu corpo. Nessa posição em que eu era obrigada a não esboçar subjetividade, tive a impressão de ter minha alma separada do corpo. Esse desconforto serviu de incentivo para este projeto. Como religião para uns, é assim que a arte funciona para mim: é uma espécie de misticismo que me ajuda a sublimar situações e começar a vê-las de maneira a terem um certo encanto.  

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