Paula Alzugaray
O outro lugar é um espelho em negativo
Italo Calvino, As Cidades Invisíveis
A experiência do estrangeiro não significa, tão-somente, deixar coisas para trás, cruzar oceanos, perder contato com a origem. Os movimentos migratórios já não obedecem a coordenadas definidas, com local de partida e destino claramente identificáveis. A destinação é improvável. Migrar implica hoje num desmantelamento das concepções de identidades culturais opostas e requer a assimilação do fragmento como possibilidade. Essa perspectiva, presente em pesquisas sobre hibridação e transculturalismo, também rege a obra em processo de Nelson Crespo. O artista tem a fragmentação como perspectiva e ótica de seu trabalho.
A imprecisão, alvo de investigação artística, é uma qualidade identitária de Nelson Crespo. Filho de portugueses, nasceu na Alemanha e vive em Londres. Há um tanto de indefinição sobre quão português, alemão ou britânico é Nelson Crespo. A série Sans Papier procura dar conta de como as mudanças e os deslocamentos afetam a visão do artista. Como em um diário de viagem, suas páginas carregam as múltiplas camadas de uma memória visual em transição.
Os três conjuntos de obras expostas no Paço das Artes pertencem à série Sans Papier e partem de um exercício de constante revisitação de imagens, livros e objetos pessoais, “que contêm memória”. Ao reproduzir passaportes e cartas oficiais, Cartas/Letters observa a relação paradoxal entre a condição do imigrante clandestino, “sem papéis”, e o cidadão que tem sua documentação em ordem e, justamente por isso, o perfil controlado e escaneado pelo Estado. Daí entende-se que o artista recorra ao scanner como uma ferramenta de elaboração do trabalho. As imagens são, depois, manipuladas e impressas digitalmente em papel algodão. A relação entre opacidade e invisibilidade – qualidades que o artista atribui ao cidadão europeu e ao imigrante clandestino, respectivamente – revela-se na opção da montagem em pares: a imagem matriz é exibida em positivo e negativo.
Nas Cartas/Letters, a técnica da fotografia digital tem a qualidade de investigar documentos de um arquivo universal e trazer à tona informações que o olho não alcançaria. Trata-se de uma estratégia de manipulação de conteúdos autobiográficos dentro do grande arquivo da memória oficial – os passaportes fotografados pertencem ao artista. Livros também são documentos pessoais: é resultado de viagens aos arquivos da infância, guardados na casa dos pais, em Portugal. Já as obras agrupadas sob o título de Landscapes se debruçam sobre o funcionamento irregular da memória humana e seus mecanismos de livre associação. Esse conjunto de trabalhos compostos sempre por duas ou mais imagens parte de um acervo de fotografias analógicas de autoria do artista. O que estão em jogo aqui são os mecanismos que levam-no a aproximar uma imagem da outra, estabelecendo relações momentâneas, nunca definitivas. As fotografias são matrizes repetidamente desconstruídas e reorganizadas em novas constelações de imagens, repetindo o comportamento instável do pensamento.