Abaixo, a entrevista de Juliana dos Santos para o crítico Claudinei Roberto sobre a mostra "O professor deverá ser o último a se retirar, mesmo nos dias de Entre o azul e o que não me deixo/deixam esquecer".
Preâmbulo necessário à entrevista da artista. Há 23 anos, o programa Temporada de Projetos do Paço das Artes vem identificando e apoiando pesquisas que nos inteiram sobre o “estado da arte” no cenário contemporâneo brasileiro, iniciativa que é notável pela sua longevidade, vai ela própria refinando os seus pressupostos e conceitos fato que revigora o projeto e o torna tão necessário num cenário em que iniciativas à cultura e à arte costumam ser lamentavelmente desdenhados, acrescente-se a isso essa participação da jovem artista negro-brasileira Juliana dos Santos, que recebendo a chancela do Paço das Artes através da exibição da obra “Entre o Azul e o que não me deixo/deixam esquecer” traz para instituição e seu público um debate incontornável sobre realidade e vitalidade da produção artística dessa maioria silenciada da nossa população.
Claudinei Roberto: Juliana dos Santos é o nome artístico de Juliana Oliveira Gonçalves dos Santos, você nasceu em São Paulo na zona norte da capital em Parque Peruche, aliás, um dos berços históricos do Samba paulistano, bairro de forte presença negra. A biografia do artista pode, num certo sentido, explicar certas opções que durante sua trajetória ele confirma. Essa abordagem da história da arte tem um caráter mais sociológico, pois, sugere que a obra é resultado de um conjunto complexo de interações do artista com o seu meio, com sua história, portanto, talvez não seja descabida a pergunta sobre qual seria sua relação com o universo da cultura negra antes do seu engajamento com a arte e a academia?
Juliana dos Santos: Penso que tudo veio junto; nasci no Parque Peruche, Casa Verde, bairros como você diz, de grande densidade populacional negra forte representatividade cultural para a população, esta parcela da população na cidade. Meus pais e tios frequentavam “bailes blacks” na década de 70, no século passado, e participavam ativamente do carnaval nas escolas de samba “Camisa Verde e Branco”, “Unidos do Peruche” e “Mocidade Alegre”, agremiações da região. Cresci e me desenvolvi nesse contexto e ambiente de carnaval e samba. Acredito que esta experiência me fez entrar para o “Corpo de Dança do Balé Folclórico de São Paulo”, fortaleceu meu contato e conhecimento sobre as culturas negras. E, diferente de muitas mulheres negras, minha mãe, Eliana de Oliveira Santos, nunca permitiu o alisamento do meu cabelo. Meu tio, Jorge Luiz dos Santos, músico, também pintava porcelanas, minha tia Marta exercitava sua sensibilidade pintando telas, minha mãe por sua vez era artesã. Penso que tornar-me artista foi uma das consequências desses estímulos, desse processo familiar.
Essa relação com a família às vezes aparece com maior ou menor intensidade em vários momentos, por exemplo, em “Qual é o pente?” realizado entre os anos de 2013-2014. Uma ação que se constituía em alisar meus cabelos com pente de ferro quente e logo em seguida desfazer o resultado com banho de chá de Carqueja. Convidei, nestas ocasiões, minha avó materna Benedicta, ao contrário de minha mãe, que durante minha infância e juventude expressava o desejo de ver lisos os meus cabelos. Era ela, a “vó Dita” que cuidava dos cabelos das mulheres de minha casa e para isso usava chá de ervas como Alecrim e Carqueja. Realizei várias vezes essa ação e como resultado é muito tocante para várias mulheres negras que tiveram contato com ele, foi também para a minha avó que ia perdendo a vontade de participar das performances e ia ganhando consciência do quão violenta pode ser uma ação que se pensa “inocente”. É interessante, é como se fosse esse trabalho fosse a “Vingança de Cã”, considerando que é um trabalho que de alguma forma tangencia a narrativa contida na pintura “A Redenção de Cam” (1895) de Modesto Brocos y Gómez*.
CR: Percebo que em seu trabalho, principalmente a partir da “Necessidade Primária”, há uma clara relação com a pintura, ou com as questões que são mais direta e imediatamente relacionadas a ela. Numa de nossas conversas você mencionou o artista-educador alemão Josef Albers (1888-1976) como uma fonte central da sua pesquisa e de fato “Necessidade primária / desdobramentos amarelos”, de 2013 trás uma inquietação sobre a cor e não exatamente sobre a pintura.
JS: Fui formada pelo instituto de Artes da UNESP em 2014, onde também realizei o mestrado e agora o doutorado. Em 2013 existia uma preocupação minha e de alguns colegas do corpo discente sobre a arquitetura e as formas de ocupação do prédio que ocupávamos, nós identificávamos uma falta de espaços para um convívio que não implicasse as obrigações acadêmicas e dessa preocupação resultou a intervenção “Necessidade Primária”. O título diz respeito à “necessidade do encontro” da confraternização, mas claro, está relacionado com a criação de “um campo luminoso” no prédio do Instituto de Artes da UNESP, que tem poucas janelas. É um site specific que corresponde a uma intervenção de pintura amarela numa das escadarias do prédio... Talvez pintura de campo expandido.
CR: Acho interessante essa vocação para o coletivo que seu trabalho parece conter e lembro que você também tem, ou teve, uma interessante atuação enquanto arte-educadora, trabalhando inclusive no núcleo de educação do Museu Afro Brasil. Então, trabalhos como o “Necessidade primária / desdobramentos amarelos” (2013) e “Qual é o pente?” (2013/14) e mais recentemente “Comer e beber o Azul” (2019) tem também um viés, digamos, pedagógico, de uma pedagogia Paulo Freire e Tropicalista na medida em que as ações não podem prescindir da participação do público, que ativa ou passivamente, é também responsável pelos resultados e sentidos que são construídos á partir dessa interação de obra/publico.
JS: A passagem pelo Museu Afro Brasil teve o caráter de formação, foi uma formação, decisivo na qualificação do debate racial, o cotidiano do museu enquanto instituição de ensino, de ensino público, os embates diários, o convívio com o acervo, tudo isso foi formador, a universidade me ofereceu estruturas de pensamento, e lá também atuei como representante discente e pude vislumbrar como, devagar, mas continuamente, jovens alunxs negrxs foram ocupando os espaços da instituição em que me formei. As obras têm isso de comunhão sim, Clitória (2017) Lavagem/Ablution (2018), Alalaô (2019) e Comer e Beber o Azul (2019) são ações construídas a partir dessa possibilidade de partilha, da comunhão grupal.
Durante minha estadia de três meses na Áustria percebi que aquilo que sou, que meu corpo negro, que meu cabelo, causava curiosidade e constrangia a população de Viena, eu era abordada em supermercados, na rua, queriam tocar no meu cabelo, ouvia a frase “I Love your hair” com bastante frequência, era o exótico, a “Vênus negra”... sou aquilo que não me deixo/deixam esquecer que sou, entende? Elaborei essa experiência na performance-instalação “Lavagem/Amblution” que fiz no Festival Bouge B, em Antuérpia na Bélgica, onde utilizei objetos relacionais, mas também creio que esta sensibilidade esta presente em “Comer e beber o Azul”, pesquisa que é um desdobramento de projeto “Entre o azul e aquilo que não me deixo/deixam esquecer”.
CR: A propósito, intuo que no seu trabalho, na sua pesquisa, existe uma dimensão espiritual, uma religiosidade difusa, que estão miscigenados com questões de identidade, de gênero, de raça e que nessa sua instalação para a Temporada de Projetos do Paço das Artes ganham um contorno, talvez mais complexo e denso na exata medida em que sugerem um “assunto” sem, no entanto, optar por uma narrativa de caráter mais literário. A cor azul e as construções que fazemos em torno dessa ideia abstrata é o fio condutor dessa “história sem enredo”. Enxergo nessa sua opção uma filiação a certa escola pouco estudada de artistas negrxs que não denunciam nas suas obras suas origens étnicas, de raça ou gênero. O que cria uma dificuldade e certa decepção, para aqueles que esperam dxs artistas negrxs uma obra determinada por características que são, presumivelmente, “aqueles” a eles. Essa é uma expectativa colonialista, mas, mais comum do que imaginamos.
JS: De fato, existem múltiplas dimensões de experiência estética e de espiritualidade, principalmente quando consideramos a essas dimensões a partir da dimensão da diáspora afro-atlântica. “Entre o Azul e o não me deixo/deixam esquecer” é uma consequência de minha pesquisa e interesse sobre cores primárias, mas é também o resultado de uma experiência metafisica acontecida num processo de meditação quando pude visualizar o chakra da minha cabeça. Mas sim, como já escrevi, falar sobre o azul é também não falar sobre o que precisamos esquecer por algum momento, o que não me deixo/deixam esquecer...
Essa imersão no azul sugere que nós, negras e negros temos uma subjetividade que está para muito além da aparência dos meus cabelos... aquela experiência de “Qual é o pente?” teve sua importância na elaboração da minha/nossa experiência de mulher(s) negra(s), mas não estou confinada a ela. Miles Davis num marco do jazz chamado “A Kind of Blue” de 1959 talvez estivesse pensando nisto também, isto é naquilo que esperavam de músico de jazz negro naquele momento. Enfim, são as múltiplas dimensões do azul... Azul dos tecidos Adires Iorubas, azul Kalunga da travessia, azul preto “azulão”, azul dos uniformes dos funcionários terceirizados precarizados.
CR: Percebo que certos artistas, independentemente de sua origens de gênero ou raça, tem buscado no silêncio, ou em estratégias que destaquem o silêncio um caminho para a discussão sobre do ruído permanente em sociedades que perderam a capacidade de se autocriticarem. O silêncio e as estratégias que o priorizam são, num certo sentido, a antítese do consumismo irresponsável e essa sua imersão no azul parece que nos convidam a essa pausa meditativa, no fim das contas, um encontro entre nós e nossa própria consciência... ou falta dela.
JS: A necessidade do silêncio, do mergulho interno na busca da possibilidade de ser o que se quer ser.
*Em “Na Redenção de Cam” pintura realizada pelo espanhol Modesto Brocos em 1895, o artista e também professor da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, representa processo de mestiçagem que, segundo a mentalidade eugenista adotada como política de Estado permitiria ao Brasil eliminar sua população negra. Nesse processo, explícito na pintura, uma população nascida negra tornar-se-ia paulatinamente branca através de um processo continuado de miscigenação. Esta obra consta do acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.