Daniela Maura Ribeiro
Contemplar as obras de Carlos Eduardo Uchôa é como deixar-se levar a um outro mundo, onde a luz ofusca e a imagem está muito além do aqui e agora.
Em sua produção atual, formas escurecidas emanam de veladuras alvacentas. Causam-nos, quase sempre, a impressão de estarmos diante de uma figura humana, embora seja precipitado afirmá-lo, considerando que inúmeras associações podem ser estabelecidas à medida que o observador abstrai os elementos da tela. Nesse sentido, a figura humana pode transformar-se em paisagem. A sutileza que separa o figurativo da paisagem resulta em ambiguidade. Remete a uma inquirição sobre o processo representacional, aludindo a um referente ideal, o homem, mas funciona também como registro do inapreensível, podendo ser pura mancha.
As relações existenciais e espaciais são o cerne da poética de Carlos Uchôa. A conformação espacial faz aflorar essas relações: as formas, que podem aparecer de três a três, duas a duas, ou uma apenas, fascinam o observador fazendo com que mergulhe num universo de utopias. O fruidor e a obra são organismos simbióticos, ou seja, ao parar para olhar o primeiro recebe os elementos contidos na obra e, por seu turno, doa suas vivências ao segundo, como em uma relação de simbiose. Esse processo evidencia que a obra depende não só de suas relações internas - as formas constituem entre si pontos interligados distantes configurando espaçamentos, vazios e silêncios - mas como da relação externa com o observador. Nessa situação, quem observa pode reconhecer-se como indivíduo através da obra, seja pela conjugação de suas experiências, seja pelo fato de identificar-se com aquela massa castanha tão espessa e enrijecida quanto a aparência de um homem que tem o dorso curvado pelas marcas da vida cotidiana.
Postas essas questões, podemos perceber que a obra traz o espectador para dentro de si a fim de relacionar-se com ele e depois lançá-lo para seu exterior, ainda mais quando as telas são de grandes dimensões, como a série que o artista apresenta no Paço das Artes. O processo de fruição tem caráter atemporal e contraria o olhar imediatista contemporâneo: é necessário abandonar-se diante da tela para poder fruí-la, diferentemente do que ocorre ao estarmos expostos a um mundo imagético onde dispomos de segundos para absorvê-lo. Desvela conceitos simultâneos e antagônicos como miragem e paisagem, calmaria e tormenta, imensidão e vazio, presença e ausência, peso e leveza, entrada e saída.
É possível traçar um paralelo entre esses conceitos ou duplas de opostos que a obra de Uchôa suscita, e o soneto "Amor é um fogo que arde sem se ver" de Luís Vaz de Camões, no sentido da construção de um conceito seja ele pictórico ou linguística, através de paradoxos: "Amor é um fogo que arde sem se ver/ É ferida que dói e não se sente/ É um contentamento descontente/ É dor que desatina sem doer".
A construção do conceito na obra de Carlos Uchôa é ocasionada também pela refinada técnica utilizada pelo pintor: é com a trama de cores, partindo de um fundo escuro e sobrepondo camadas de branco, que concede espessura ao olhar. Com a gestualidade de suas pinceladas adensadas, marcadas vertical e horizontalmente, constrói e desconstrói, permite que as formas ora se assemelhem a um volume ora a um vazio e possibilita ao espectador entrar e sair de suas telas. A imprecisão dos contornos contribui para que esse resultado seja ressaltado por meio das vastas áreas brancas de tinta que operam como espaço de inapreensibilidade.
A condição de ser e não ser, estar e não estar, permanecer fora ou entrar, ver e não ver imprime a sensação de transcendência. É como querer expressar o inexprimível.
* Carlos Eduardo Uchôa foi artista convidado para a Temporada de Projetos 2000