Bárbara Wagner nasceu em Brasília (DF), em 1980. Como jornalista e fotógrafa, desenvolve uma prática artística e documental voltada para a representação do 'corpo popular' e suas estratégias de subversão e visibilidade entre os campos da cultura pop e da tradição. Uma extensa seleção de suas obras foi publicada em O que é bonito é pra se ver (Het Domein 2009). Em Recife, realizou as séries de fotografias Brasília Teimosa (2007), Estrela Brilhante (2010), Jogo de Classe (2012), A Corte (2013) e Crentes e Pregadores (2014). É mestre em Artes Visuais pelo Dutch Art Institute (2011).
Olivia Ardui
Olivia Ardui
Olivia Ardui entrevista Bárbara Wagner
O projeto Crentes e Pregadores se apresenta como uma série de retratos frontais e posados de diferentes membros de igrejas evangélicas no interior e nas capitais de Pernambuco e Alagoas. A artificialidade da pose e a composição das fotografias remetem à alguns de seus trabalhos anteriores como Brasília Teimosa (2005 – 2007) ou ainda A Corte (2013). Em ambos casos, as fotografias foram realizadas em dois tempos. Durante um período, podendo se estender a até dois anos, você visitou respectivamente uma praia frequentada por classes populares e um maracatu urbano, prestando uma particular atenção às atitudes corporais das pessoas. Em seguida, você solicitou que eles reproduzissem uma certa atitude corporal que lhe havia chamado a atenção. Instintivamente eles corrigiam e melhoravam as suas posturas, nunca replicando exatamente a mesma configuração gestual. Esse processo, que se situa no limiar entre prática documental e fotografia encenada, é particularmente relevante para considerar a maneira como os indivíduos constroem a sua própria imagem corporal. Mais especificamente, uma imagem estruturada, mesmo que inconscientemente, em torno de um ideal cristalizado em uma pose. Esse ideal pode ser de ordem estética - para aparecer da melhor e mais fotogênica maneira possível em uma foto - ou ainda, relativo à uma aspiração de ascensão social ou até ligada à uma função específica na sua comunidade.
O: Depois de retratar indivíduos que frequentavam as praias de Brasília Teimosa e os dançarinos de maracatu e frevo, o que a levou a abordar a comunidade evangélica?
B: Penso que esses assuntos são estigmatizados porque reproduzem, historicamente, o discurso dos que têm poder. Nosso entendimento do que é bonito ou feio, desejável ou medonho passa por questões de classe. A imagem do "povo" num domingo na praia de periferia - ou numa festa de morro ou num palco de carnaval – é construída assim. O que há de comum entre o pescador de Brasília Teimosa, o brincante do maracatu Estrela Brilhante, o bailarino de Frevo de Olinda e o pastor de uma igreja evangélica (ou o Mc de Bregafunk, tema de meu trabalho mais recente)? A circulação de suas imagens está, antes, sujeita a dinâmicas de dominação de ordem política e econômica - e não pura ou simplesmente estética. É isso que é comum a esses temas; de resto não dá pra generalizar quando se fala de representação da cultura popular. Os contextos sócio-econômicos de cada um dos trabalhos que fiz até hoje são diferentes, específicos, contraditórios, e geram reações que podem variar do preconceito ao desejo e da repulsa à celebração.
O contexto de produção da série Crentes e Pregadores é a onda do evangelismo que domina o debate público sobre as mudanças recentes do país. Por mais visível que seja essa onda (desde que boa parte das novas denominações evangélicas controlam também redes ou canais de rádio e TV) ela ainda não foi tratada de modo consistente por artistas ou documentaristas em território brasileiro. Na academia são muitos os estudos sobre a relação dessas novas religiões com o mercado, consumo, ocupação e classe, mas ainda é rara uma abordagem que pense nos evangélicos enquanto "imagem". Talvez por isso estejamos tão familiarizados com os discursos próprios do universo evangélico - sobretudo do neopentecostal – a despeito de nem sempre conseguirmos identificar o que torna um assembleiano distinto de um seguidor da Igreja Universal.
O: Apesar dos contextos serem muito diferentes, o processo de realização de Crentes e Pregadores parece apresentar similaridades com essas duas séries citadas. Como foram escolhidos os indivíduos e os lugares onde eles foram fotografados?
B: Crentes e Pregadores vem dessa urgência em olhar para esses corpos de modo mais direto, numa oposição aos registros sensacionalistas que celebram os aspectos mais obscuros dos rituais dentro das igrejas, dos exorcismos, do êxtase espiritual. Essa busca pelo que há de significativo no gesto mais banal é comum às séries que você citou, junto com meu interesse na representação de tradições populares em circulação nos meios massivos.
Entrevistei e fotografei evangélicos (em sua maioria jovens) em áreas do centro e da periferia do Recife, no interior de Pernambuco e na região metropolitana de Alagoas. Como método, na seção Crentes me concentrei no registro de fiéis após os cultos, nas ruas, e na seção Pregadores investi atenção nos pastores no altar, durante e após seus sermões dentro das igrejas.
O: O formato em série e a padronização dos enquadramentos (frontais, do corpo todo, em um ambiente específico), partiria de uma vontade de catalogação ou uma tentativa de sugerir uma tipologia de ordem sociológica? A acumulação desses retratos individuais poderiam ser considerados como um retrato coletivo de uma comunidade religiosa? É possível apontar para algumas características desse retrato coletivo?
B: Gosto de pensar que o uso da série ou repetição mais ajuda a entender as diferenças entre os retratados do que sugere uma homogeneidade entre sujeitos distintos. O padrão formado por escolhas de enquadramento, ângulo e distância entre eu e o fotografado se definiu ao longo da pesquisa, não a priori. Mais que tentar criar uma tipologia grandiosa (que sugerisse uma adequação de singularidades a tipos universais) minha vontade era de observar as sutilezas desapercebidas justamente quando tentamos fazer uma análise geral de um grupo, ou um retrato "coletivo".
Nesse sentido, a escala das impressões fotográficas exibidas no Paço das Artes é pensada para possibilitar um exame generoso desses pequenos detalhes. Outro aspecto que gosto na série Crentes e Pregadores é a luz artificial sobre corpos e posturas perfeitamente "normais". A luz do flash em oposição ao sol tem ali a intenção de interrogar os limites mesmos do mundo em questão: até que ponto a conversão religiosa é fenômeno espiritual e quando ela passa a ser reflexo direto de mudanças na vida material do fiel? Que leituras do mundo 'real' aprendemos com a pregação de jovens pastores, performers de um poder de 'voz pública' exercido tão recentemente? Pra mim, é como se a ideia da crença ou pregação da 'verdade' pudesse sair do âmbito religioso para entrar no estético e político. Talvez a moral dessa pequena história seja a de que essas religiões promovem um convencimento de que todos têm direito a "não-pobreza", de que todos deixarão de ser pobres, o que inequivocamente quebra uma tradição de resignação muito arraigada e imobilizadora em nosso país. E esse é um ganho real.