Na instalação 60 Seconds in a Lifetime, de Cristina Barroso, a consciência da finitude, a impessoalidade e o racionalismo (noções relacionadas a centenas de tabelas de tempo simetricamente dispostas) são contrapostos às metáforas da transcendência e da ancestralidade (fotografias mostram sítios arqueológicos em Israel, na antiga região da Judéia). Esses emblemas da antiguidade funcionam como inserções pontuais no turbilhão frio e lógico das escalas, interrupções bruscas que chamam a atenção do espectador para aquele ponto, forçando-o a se deparar com indícios de um espaço-tempo remoto, memória coletiva e arcaica que atravessa o tempo e por ele é impregnada. A ampla superfície de fundo, construída por estes pequenos formulários, opera também como um suporte para as imagens. 

Por sua vez, as grades numéricas, originalmente usadas para se orientar em alto-mar, estabelecem uma estrita relação tempo-espacial. Os algarismos representam frações de segundo, que se alinham sucessivamente até totalizar um minuto, e a sequencia assim se repete milhares de vezes, o que remete a uma concepção cíclica da História. É interessante notar como as formas naturais da paisagem têm continuidade em milhares de linhas sinuosas, criando uma indistinção entre os momentos espaciais (a possibilidade de localização planetária propiciada pelas tabelas) e temporais (a reminiscência primitiva das montanhas, a transmitir forte ideia de infinitude). Por vezes, a configuração destes papéis constrói a imagem de um olho, que devolve a mirada do espectador. 

Já nos trabalhos da série Clockwork, é o tempo cotidiano que se impõe e nos deparamos com fotomontagens baseadas na livre associação de imagens, extraídas da realidade o mais factual possível: aquela encontrada nas páginas dos jornais. Conquista espacial, guerras, avalanches, nanotecnologia, passeatas, megalópoles em colapso, ataque às torres do World Trade Center ... trata-se não apenas de um panorama dos acontecimentos recentes na história do homem, mas também de uma incisão cortante de camadas temporais, uma série de "navalhas de tempo" que, sobrepostas, criam um turbilhão de efeito caleidoscópico, denso e vertiginoso. 

Ao imprimir sobre cada uma das fotografias o foco de um binóculo - representado pela sombra de uma dupla esfera, como se alguém estivesse observando as cenas - a artista interpela o espectador, convidando-o a se aproximar. Incita, enfim, a conciliar as perspectivas: a dela, que simbolicamente se vale do instrumento para, de longe, aproximar e ampliar a imagem, e a do público, que já se encontra fisicamente próximo do trabalho, mas tem a opção de se deslocar para um ponto ainda mais privilegiado, em busca de detalhes que escapam a um olhar de plano geral. Outro dado de sua poética que se impõe sobre a sucessão ininterrupta dos fatos são as interferências que ela realiza com tinta acrílica sobre este mosaico histórico em rotação, tão barroco em sua eloquência e movimento. Desta forma, Clockwork aponta para outros momentos da experiência contemporânea, como a multiplicidade, a fragmentação e a sincronicidade.
 
Em Calendário, um trabalho in progress, é o tempo subjetivo que se manifesta. Barroso usa tinta a óleo negra e, dia após dia, faz marcas nas folhas de um calendário de papel. Como um diário íntimo, imprime na "folhinha" seus desenhos abstratos que remetem a formas ancestrais: surgem círculos, losangos e retângulos disformes, mas vemos também luas, sementes e olhos. Estes elementos são ali colocados como uma maneira de se reapropriar do tempo cronológico, de imprimir um timbre próprio no racionalismo e na inflexibilidade da grade temporal que nos é cotidianamente imposta. Uma vez utilizada por Cristina em seu calendário, uma forma sempre retorna, como a reiterar sua permanência no mundo. Mais: a reafirmar a vontade da artista em gravar sua marca nessas infinitas linhas do tempo que correm paralelas. 

Além de uma antologia da produção recente de Cristina Barroso, esta exposição promove a síntese de uma preocupação central em sua obra: o cruzamento entre o tempo histórico (a "grande História", projeto da instalação 60 Seconds in a Lifetime), o cotidiano (ligado aos fatos da contemporaneidade, à realidade mais próxima da artista e de sua época, caso de Clockwork) e o subjetivo, reelaborado diariamente por sua poética de trabalho, mas sujeito às vicissitudes dos tempos histórico e cotidiano.

* Cristina Barroso foi artista convidada para a Temporada de Projetos 2003

Clockwork

Cristina Barroso

  • Detalhe de Escadas (2003)
    técnica mista s/ tela
  • Detalhe de Circuito (2003)
    óleo e colagem s/ tela
  • Detalhe de Labirinto (2003)
    asfalto e acrílico s/ tela
  • Detalhe de Clockwork (2002)
    acrílico s/ jornal s/ cartão
  • Detalhe de Calendário (2003)
    óleo sobre papel
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Fernando Oliva

Fernando Oliva é curador e professor. Coordena o Núcleo de Projetos do Paço das Artes e é docente da Faculdade de Artes Plásticas da Faap. Entre seus projetos recentes destacam-se I/Legítimo: Dentro e Fora do Circuito (MIS e Paço das Artes, 2008), COVER=Reencenação+Repetição (MAM-SP, 2008), Comunismo da Forma: A Estratégia do Vídeo Musical (Galeria Vermelho, 2007) e À La Chinoise + The Site Specific (Microwave Festival de Hong Kong, 2007).

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