Trabalhos recentes de Geraldo Souza Dias, feitos de minúsculas telas, fazem parte de um arquivo pessoal, um diário em que o artista registra diversos eventos e cenas de seu cotidiano. Pequeninas pinturas apresentam retratos, auto-retratos, referências da arte, paisagens, letras, recortes de jornal e imagens inusitadas como a de um tigre ou de um filtro de barro.
Entretanto, não se pode dizer que todas estejam expostas, a maioria não se deixa contemplar facilmente. A sua função no conjunto é tão estrutural quanto a de uma vértebra. A cuidadosa montagem, em forma de castelo de cartas, traz arranjos de letras que, distanciando-se de meros elementos gráficos, formam palavras em alemão. Em obras anteriores, o artista - que viveu quase dez anos na Alemanha - usou telas de grande formato em que escrevia frases que abordavam, entre outros temas, a migração e a diferença entre o eu e o outro.
Nesse trabalho, a imagem também perde a sua primazia, não para o significado das palavras, mas para o chassi, o esqueleto que sustenta o castelo. É como se as pinturas que estão na parte interna do edifício abdicassem da sua exterioridade e planaridade para darem forma a esse organismo piramidal. Elas se ocultam e formam um volume, um corpo em que cada parte deve cumprir sua obrigação sem vacilar, sob pena de comprometer o todo. Lúcidas de que nem todas podem se exibir, menos por questões de cunho privado do diário do que por princípios elementares da construção, elas se acomodam como se estivessem predestinadas a serem alicerces fincados em areia movediça.
A aparente instabilidade com que estão agrupadas não deixa de remeter ao questionamento que a própria pintura tem que se fazer para se manter em pé. Tratando-se de fragmentos do dia- a-dia do artista, a referência à fragilidade e à dificuldade de se erigir uma obra de pintura também não está distante. Do mesmo modo, o aspecto lúdico da montagem parece aludir a uma atividade que visa mais ao prazer (de montar, brincar, pintar) do que a qualquer outra finalidade.
Superada a velha querela da morte da pintura, o artista, sempre fiel ao ofício, consegue praticá-Ia sem a necessidade de pincéis, tela e tinta. Em Kunstfarbe, único trabalho da exposição realizado ainda na Alemanha, tiras coloridas de tecidos se entrelaçam em uma grade a céu aberto, mostrando que o campo da pintura é vasto e que ela não se reduz aos tradicionais modos de apresentação.
Geraldo expõe ainda trabalhos realizados em suportes um pouco maiores, em que, partindo da estrutura de anúncios e encartes de jornais colados em telas, realiza uma pintura que dialoga com a vertente construtiva. Mas nessa relação há muitas dissonâncias que fazem questão de se mostrarem. A limpeza formal e a busca de rigor e objetividade que, aliadas à valorização dos espaços vazios, foram a grande contribuição de alguns artistas construtivos, inclusive no design gráfico, são aqui contaminadas pela vulgaridade do espaço da vida. É como se o artista, com refinada consciência histórica, tivesse como premissa a falência do projeto moderno e, sem ignorá-Ia, prosseguisse com sua pintura. Aos poucos, ela vai se misturando ao mundo sem temer que sua especificidade se dilua na banal idade do cotidiano.
* Geraldo Souza Dias foi artista convidado para a Temporada de Projetos 2004