Fernando Oliva
Na ação
Caminhada ao redor da casa, Cristina Ribas realiza percursos aleatórios de afastamento/aproximação de sua própria residência, enquanto recolhe objetos, como tijolos, pedras, pedaços de cerâmica, porcelana e toda espécie de refugo da cidade, que geralmente passaria despercebido. Em seguida dá início a uma espécie de catalogação, uma "falsa arqueologia", que pressupõe o convívio com esses elementos. A artista se reapropria dos objetos
fundamentalmente pelo tempo que ela passa ocupando-se deles, na tentativa de criar uma relação íntima e duradoura. Após a "ressurreição" para o mundo, os fragmentos são deslocados para o ambiente artístico. No Paço das Artes estão dispostos na forma de um círculo de três metros de diâmetro, classificados do maior para o menor, como "memória da deriva", protagonizada por Ribas. É preciso ressaltar que se trata de um trabalho em processo, passível de ser realizado a qualquer momento e em qualquer lugar, incorporado ao cotidiano da artista, que, desta forma, esvazia a carga "aurática" da obra irreprodutível.
Outro trabalho desta exposição é formado por um conjunto de quatro páginas de um jornal diário paulistano, com anúncios de apartamentos. As folhas são iluminadas por trás, com luz fluorescente, criando uma sobreposição de frente-verso que embaralha as informações e abre caminho para relações de conteúdo inesperadas. As páginas são trocadas diariamente e as antigas vão sendo empilhadas no chão. Com base em um procedimento simples, mas carregado de ironia, Ribas questiona a maneira como uma cidade é compartimentada e comercializada. A posse individual de um determinado espaço físico traz, embutida, a realização de determinados desejos, acena com um projeto idealizado de vida urbana e "garante" o futuro. Além de dialogar com a noção cíclica de tempo-espaço, presente em
Caminhada, a obra pode ser lida como crítica a um certo estilo de vida metropolitano.
Uma das maneiras de se aproximar da produção recente de Cristina Ribas é apelar para o instrumental estabelecido pelos ativistas e pensadores situacionistas. Neste sentido, os conceitos indissociáveis de deriva, psicogeografia e urbanismo unitário atravessam a obra da artista gaúcha e nela encontram uma leitura contemporânea, que propõe uma relação arriscada, imprevisível e poética entre o homem e os espaços da cidade. Guy Debord ressaltou o caráter eminentemente urbano da deriva no contato com os "centros de possibilidades e de significações" que são as metrópoles pós-industriais. Segundo o pensador francês, pródigo em "construir situações" que libertassem o homem da mediocridade cotidiana, a prática resultaria em novas condições objetivas de comportamento, em novas maneiras de se relacionar com o mundo. Os situacionistas propunham a dissolução das fronteiras entre o espaço urbano e o doméstico, na contramão do confinamento solipsista. Não por acaso, Ribas faz parte do grupo Laranjas, formado em Porto Alegre, cujas intervenções interpelam e surpreendem o público - sendo que algumas de suas ações têm início nas ruas e prosseguem até o espaço íntimo do espectador.
Em Contentores, a artista transporta oito contentores de lixo idênticos, desses usados em condomínios, para o interior do Paço. Destituídos de sua função, apenas deixam-se estar por ali, dispostos em duas fileiras paralelas, ocupando, de forma incômoda, o lugar por excelência da arte. Intrusos, deslocados do local de origem, têm potencializada sua presença no mundo e, principalmente, no ambiente de uma instituição cultural que, assim, vê colocados em xeque seus modelos e objetivos. Trata-se de grandes latas de lixo, são móveis e se encontram ostensivamente vazias. Que o espectador, animado pelo espírito subversivo e libertário dos situacionistas, faça com eles o que quiser. A deriva, diziam eles, é um jogo; e a cidade, um espaço aberto para a aventura.