Marcio Harum
CONVERSA COM RENAN MARCONDESMH: Antes de entrarmos para falar do teu projeto para a Temporada 2017 do Paço das Artes, talvez fosse saudável voltarmos a um momento que chama bastante minha atenção na tua produção artística. Por favor, me explique, detalhadamente, a importância daquela superfície de acontecimentos no teu trabalho intitulado Um instante anterior à extrema violência, de 2015. RM: Um instante anterior à extrema violência foi feito junto com a Carolina Callegaro. Buscamos criar um tipo de obra no qual não houvesse propriamente um evento a ser visto (uma ação com algum tipo de simbolização, progressão, finalização etc.), mas sim um campo de existência experimental aberto ao público, como se percebe numa jaula de zoológico ou nos parques temáticos aos moldes do Simba Safari, no qual, por ora, coisas acontecem e, por vezes, estão todos os bichos adormecidos.
Para chegar a esse ponto de convergência no nosso trabalho, tomamos emprestado como referências principais os vídeos da Sam Taylor-Wood (nascida em Londres, 1967), algumas pinturas de natureza-morta e, mais especificamente, o trabalho do pintor Eduardo Berliner (Rio de Janeiro, 1978).
Selecionamos um vídeo com búfalos brigando, editamos
frame a
frame as imagens, e ficamos estudando a movimentação dos animais e como seria possível sincronizar tal biomecânica com nossos próprios corpos. No fim das contas, criamos uma estrutura de improvisação, mas com regras bem definidas a propósito das relações corporais (entre elas, só podíamos olhar para a cor azul, daí aquele espaço criado sob essa exigência), além de dividirmos em três blocos de performance, ao longo das duas horas e meia de duração (fisicamente era muito exaustivo), com intervalos breves ao som de Madonna, nos quais éramos substituídos por uns bichinhos de pelúcia eletrônicos que se movimentavam por esse espaço. O trabalho aconteceu na área expositiva da Galeria Olido, em agosto de 2015.
Apesar de hoje achar o trabalho um pouco estetizado demais, penso que há algo nele dessa criação um tanto quanto laboratorial-asséptica que ainda me fascina, assim como o desejo de realizar um trabalho em que o público não tenha muito onde se agarrar por um entendimento claro do "sentido" ou "mensagem" da obra. Vejo que o que me atrai na performance é mais a articulação de um modo de vivência do corpo e, se possível, também, lidar com o que é estranho ao nosso mundo. Algo que não me faça sentir o desejo de comentá-lo diretamente, mas que acabe comentando-o pelo fato inevitável de que corpos são vistos. Ou seja, jamais se conseguirá um nível de abstração como o de uma pintura de Mark Rothko (Letônia, 1903 – Estados Unidos, 1970), por exemplo, em uma performance. Mas a tentativa é necessária.
Sei lá, penso que falo de um desejo indefinido percebido em certas performances. Como quando a artista Marcia X (Rio de Janeiro, 1959-2005) cria
Ação de Graças (2002), na qual substituía sapatos femininos por galos costurados com cristais e pérolas, cujas cloacas recebiam seus pés, mas impediam a artista de ficar em pé. Ou até mesmo a iconoclastia via supressão, com Lygia Clark (Belo Horizonte, 1920 – Rio de Janeiro, 1988), ao manipular uma pedra em cima de um saco plástico cheio de ar em
Objetos relacionais (1966. A partir de 1975, começa a aplicar, terapeuticamente, os objetos sensoriais sobre corpos). Acho que é mais por aí.
É a criação de um contexto de ação no qual a relação com o mundo não seja meramente instrumental e nem reduza seus processos de simbolização à manutenção de um discurso (claro que, em algum nível, esse discurso necessariamente aparece, quando colocamos, por exemplo, um urso eletrônico para performar no nosso lugar ao som de Madonna…).
MH: Quando teu trabalho surge em dupla, como com a Carolina Callegaro, como ela é creditada na tua obra, como chama essa participação? É assistente, coautora, colaboradora, artista, mente superior, amiga, parceira, alter ego, metade de uma dupla não assumida? E como tu te autocreditas em tua própria obra, quando surge a presença de Clarissa e Carolina Callegaro nos vídeos Protetor de proximidade humana para valsa (bem como danças de casal em geral que não empreguem rodopios) e Protetor de proximidade humana para beijos (bem como para trocas de fluidos corporais em geral)? Diretor, coreógrafo, performam juntos, formam um grupo?
Há duas fortes inspirações em relação ao lugar do corpo descritas por ti até agora: o manuseio energético de tratamento e cura dos corpos emocional e psíquico de Lygia Clark, com os Objetos relacionais, e a ritualística de Marcia X, com Ação de Graças. Qual é tua intenção central ao exibir Protetores de proximidade humana (unidades Valsa e Beijo), 2017, nesta mostra na Temporada 2017 do Paço das Artes?
RM: Carolina Callegaro, além de ser uma quase irmã minha (moramos juntos há alguns anos), assina a coautoria dessa obra comigo, assim como a de Matéria IVONE, de 2016, outro trabalho sobre o qual ainda não conversamos, Marcio. Temos um polo de produção em dança gerido e dirigido por nós dois, e produzido pela Tetembua desde 2013 (ela, você já conhece), chamado Pérfida Iguana. Nele, a Clarissa geralmente atua como dramaturgista, Carolina e eu ficamos com a direção e performance, e mais outros convidados, que sempre variam de acordo com o caráter do projeto. Mas, como somos todxs muito próximxs, inevitavelmente essa galera aparece igualmente em outros projetos concebidos apenas por mim.
Voltei recentemente de uma residência no Instituto Sacatar, na ilha de Itaparica, na Bahia. Fico pensando aqui comigo que há algo material no ritual religioso/mágico/artístico que me interessa muito, não só no sentido de adorno e adereços, mas também no da fisicalidade de um músculo que treme por muito tempo, de uma comida que forra o estômago, de um calor gerado no espaço pelos corpos, de uma arquitetura de ouro que oprime o corpo, de uma bebida ou chá que altera os modos de visão. Como tudo isso afeta e reverbera, praticamente, no mundo são outros quinhentos; mas se eu penso a magia dentro dessa perspectiva de transformação material dos corpos e da relação entre eles a partir de uma alteração de percepção (e, portanto, de mudança de visão de mundo), talvez haja algo, sim, de mágico nos trabalhos.
Os objetos (como sempre, então) funcionam como dispositivos para mudar a percepção de coisas muito banais. No caso desse novo objeto apresentado em Protetores de proximidade humana (unidades Valsa e Beijo), está muito claro que a tensão gerada pelos lábios no esforço de se colocar a língua para fora, a impossibilidade de visão e o cheiro direto de madeira da máscara alteraram muito rapidamente os corpos, principalmente pelo fato de não haver ideia do que estava acontecendo com o corpo do parceiro de beijo. De certa maneira, eu os crio com esse interesse, de ver essa transformação material se operando, e que tipo de imagens ela promove.
A diferença, me parece, é o que reveste essa experiência. Pois eu não a produzo para que o público a tenha, ou para deixar dois performers tendo tal vivência ao longo do período da exposição. Crio uma segunda camada que é o vídeo, o que é assumidamente pré-produzido. Há algo, especialmente na obra de Lygia Clark, que é a aposta de emancipação e utopia pela arte. Reflito, cada vez mais, em comentário e distopia. É quando se transmuta o mistério do inexplicável em objeto (o ex-voto) ou souvenir (as fitas da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim de Salvador da Bahia). Vendo bem, durante alguns anos, mantive alguns membros humanos de cera no meu quarto, ex-futuros votos de uma promessa que nunca fiz ou cumpri. Havia cabeças, pernas, pés…
MH: Obrigado, por ora, Renan. Seguimos com esta nossa conversa – que me deixou curioso – de onde paramos, logo após a inauguração de tua mostra. Até breve.