NB O que atraiu seu interesse por apresentar animais mutilados?
VM Antes mesmo de desenhar/pintar animais deformados, me interessava muito notar que algumas pessoas humanizam seus bichos; isso me intrigava e despertava curiosidade. Em 2009 adotei meus dois cachorros, e nessa relação próxima com meus bichos, percebi que se algo de ruim acontecesse a alguns deles, eu ficaria muito abalado. Percebi neles um depositário de sentimentos, de uma humanidade, que nem sempre eu praticava para com outras pessoas. Percebi, no animal, um depositário sincero de sentimentos.
Dessas percepções, passei a apresentar em meu trabalho imagens de animais mutilados, inicialmente através do desenho, como metáfora e aproximação de nossa própria condição de ser humano. Perceber a imagem de um animal doméstico ferido e mutilado é como perceber as impossibilidades de nós mesmos, em qualquer âmbito.
Naquele momento também passei a manifestar em meu trabalho um interesse acerca dos arquivos e das dinâmicas museológicas, assuntos este que antes repousavam sobre meus interesses teóricos (em 2005, paralelo ao meu mestrado em História da Arte, fiz também uma pós-graduação em Museologia). Trabalhar com a imagem do animal doméstico era uma operação semelhante aos desenhos de ilustração zoológica; também naquele momento passei a projetar uma série de instalações, onde utilizava animais taxidermizados, procurando trazer para o mundo das artes, meios e feituras próprios de um museu de ciências naturais, travando assim um diálogo institucional entre arquivos e meios de salvaguarda. Trabalhar com imagens de animais mutilados também nasceu de meu interesse pelas dinâmicas museológicas e de dialogo entre o museu de arte e o museu de ciências naturais.
NB Qual o desafio que você encontra com esse assunto?
VM Um dos desafios que observo repousa sobre as reações, muitas vezes efusivas, de pessoas amantes dos animais, frente ao meu trabalho. As pessoas são intolerantes e preconceituosas, em muitos casos, e leem meu trabalho como uma ode à crueldade, o que não é verdade. Digo preconceituosas porque, um olhar mais atento perceberá que trato não de uma crueldade, mas sim de uma crueza, de uma realidade.
Outro desafio, de ordem da prática artística, é esboçar um horizonte tangível para meus interesses e sua manifestação enquanto produto de arte. Algumas perguntas são companheiras de jornada: Quais diálogos podem ser estabelecidos entre interesses pessoais, exercícios poéticos e estéticos e sua contribuição para o sistema e a história da arte? Minha ação faz diferença? São perguntas existenciais, eu sei, mas que me desafiam a pensar a validade do meu trabalho frente ao mundo, como objeto de arte e objeto social.
NB Vc sabia que a palavra bizarro pode ter várias conotações? Que tanto pode significar primoroso, gentil, magnânimo, bem-apessoado quanto esquisito, extravagante e excêntrico?
VM Nesse sentido, bizarro se enquadra perfeitamente em meu trabalho: busco uma feitura primorosa, “gentil” no trato com a forma, mas esquisito na composição cromática, extravagante no trato de assuntos próprios do mundo das artes.
NB Vc acha que assuntos “fora do comum” chocam ou seduzem as pessoas ?
VM Não acredito em uma separação tão veemente entre choque e sedução. A mim a palavra sedução remonta a um interesse sensual, sentido na pele, a uma curiosidade lasciva. Para nós, de um país cujos valores morais cristãos são tão arraigados, essa curiosidade lasciva remete, também, à culpa e à repulsa. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que nos chocamos e repelimos algo, somos profundamente atraídos e despertados pela curiosidade.
Nesse sentido, ao nos deparamos com assuntos fora do comum, acredito que há um fluxo entre choque e sedução, nem sempre possíveis de separação, mas que tem um ponto em comum, que é o interesse pelo “objeto”. O que pode variar é como a pessoa externa esse interesse.
NB O gabinete de curiosidades é fruto de um amor à arte ou de um gosto bizarro?
VM No mundo da arte de hoje, como separar arte e bizarrice? Ou melhor, que bom produto de arte, hoje, se faz sem uma dose de bizarro, de extravagância e gentileza? Estas são qualidades essenciais para se entender a obra "Bandeira branca", que Nuno Ramos apresentou na 29ª Bienal de São Paulo, por exemplo, e tão presente na memória artística recente.
Amor à arte e gosto pelo bizarro, hoje, se misturam, e abrem para os artistas um campo vasto, e perigoso, de investigação e pesquisa.
Assim, remeter ao gabinete de curiosidades, e às práticas colecionistas do século XVIII e XIX, é, sim, fruto de um amor a arte, de um gosto pelo bizarro, mas não somente no sentido da observação mas, especialmente, no desejo de criar, transformar e materializar pensamentos, percepções e reflexões.
NB É possível pensar que as pessoas fiquem mais sensibilizadas ao ver seus animais mutilados na arte do que na vida do dia a dia?
VM Sim, e isso é algo que também me intriga. Ao ver meus animais, as pessoas se deparam com uma imagem fantasiosa, bizarra e grotesca. Existe, ali, um filtro que permite a fruição, como se frente ao produto de arte a pessoa fosse obrigada a refletir, fruir e mobilizar sentimentos, tudo isso protegida pela certeza de que aquilo não é real; neste momento, ela está protegida pela distância entre a vida real e a experiência da fantasia. Contudo, acredito que este contato, dado pelo filtro da fantasia, gerará, inevitavelmente, um outro olhar frente a vida no dia a dia. No espaço museológico e institucional, há uma “proteção”.
Também acredito que o meio utilizado para a mensagem, no caso desta exposição da Temporada de Projetos, o desenho e a pintura, despertam um repertório comum, ligado à uma tradição artística, que permite, com maior facilidade, uma sensibilização e, também, um diálogo questionador de tal tradição.
Entrevista feita por Nancy Betts com Vitor Mizael
Abril 2013