Mestranda em Artes Visuais e graduada em Artes Plásticas pela ECA/USP, Yukie Hori recebeu em 2014 o V Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia e em 2013 o 6ª Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça e Rede Nacional FUNARTE Artes Visuais. Em 2011, foi laureada pela UNESCO com o prêmio “Aschberg Bursary Programe for Artists”. Entre as suas individuais, destacam-se: “Through the Boyds’s Looking-Glass House, and What Lady Shadow Found There” (2011), no Bundanon Trust em New South Camberra, Austrália; “Studio Games/Stiúideo Clichí” (2010) no Leitrim Sculpture Centre-LSC, em Leitrim, Irlanda, entre outros. Saiba mais: http://www.yukiehori.com
Mariano Klautau Filho
Mariano Klautau Filho
Mariano Klautau entrevista Yukie Hori
M: A presença de outro artista, ou de seu universo criativo, parece ser o elemento fundador de uma obra no teu processo. Desde quando e como surgiu essa motivação?
Y: Tenho pensado muito nessa recorrência de procedimento, também amigos que acompanham meus trabalhos têm me questionado a respeito e percebo que o assunto lhe intrigou também.
Não sei se haveria algum marco preciso para essa presença de outros artistas como parte do trabalho. Na graduação, citava obra de amigos, talvez naquele momento as aproximações fossem mais imediatas, a partir de artistas do meu convívio. Não só naquele momento na verdade, porque o mesmo procedimento se repetiu em duas residências, na Argentina e no México, cujos trabalhos tinham como ponto de partida as obras ou procedimentos de meus colegas.
Talvez no fundo, tudo isso tenha a ver com a minha infância, sempre que eu pedia para meu pai me ensinar a fazer alguma coisa, ele dizia, “aprenda olhando” (aprenda olhando como eu faço ou como tal pessoa faz).
M: Em Passado Camuflado, a relação com o trabalho de Vera Barbieri, além de ser componente fundador se torna constituinte da obra. O uso da dedicatória é título e parte importante da reiteração, da afirmação do trabalho, de sua identidade. As dobraduras propostas no trabalho estão também na forma como você refaz as dedicatórias a ponto transformá-las quase em poema. Esse aspecto não revelaria a literatura entranhada tanto no processo quanto no resultado final?
Y: Fiquei intrigada com o “componente fundador”, talvez os trabalhos “dedicados” ou “homenageados” deem a entender que sempre parto de outro artista, mas não é sempre assim. Algumas vezes o trabalho já existe mas “convoco” algum artista para ajudar em alguma questão.
Tenho estudado arte e cultura japonesa nos últimos dois, três anos e isso tem ampliado minha visão para alguns aspectos de meu trabalho como, por exemplo, as técnicas ou retóricas da poesia japonesa que são bastante recorrentes também em obras visuais, como o honkadori e o mitate.
O honkadori seria o ato de emular poemas e canções de grandes predecessores e, conforme a cultura tradicional japonesa, não seria considerado como uma mera cópia, mas um “esforço louvável”, conforme diria Hiroshi Sugimoto. Já o mitate, teria a ver com a paródia (sem diminuição do modelo) e pode compreender desde uma simples alusão ou ter ainda sentido de comparação, imitação, metonímia, metáfora, até se expandir enquanto símbolo.
As duas retóricas não são entendidas como cópias, mas atualizações, pressupondo-se aproximação intencional com o objeto referencial – no honkadori de forma mais estreita: o pinheiro é tema no par de biombos Shôrinzu (Vista de floresta de pinheiros) de Tôhaku Hasegawa, na fotografia Pinetrees de Sugimoto e nos meus rolos em [Para Tôhaku Hasegawa] Cultivando Pinheiros. Ou a casinha da obra da Vera e as casinhas dos Passados camuflados.
No mitate, a ligação seria mais descolada, partindo da ideia, da essência do objeto mencionado, por exemplo, nas estampas xilográficas, a série 53 Vistas da Estrada Tôkaidô, de Utagawa Hiroshige, as 53 paisagens viram 53 gatinhos em 53 Modos de criar amados gatos, de Utagawa Kuniyoshi. No trabalho do Paço, a luz das janelas e portas se compara ao ouro do makie da laca japonesa.
Em ambos, a referência é reelaborada em nova versão como uma “repetição renovada”. Percebi que, no Japão, essas repetições são antigas, abundantes e que, se não exaltadas, não são vistas como negativas. Provavelmente, reflexo de uma visão de mundo cujo sujeito é parte (e não centro) do mundo ou das coisas. Enquanto estudava esses conceitos, comecei entender que em meus trabalhos, mais do que se apresentarem como objetos autônomos, completos em si, lhes importava, como são percebidos em relação à alguma coisa.
M: Os trabalhos das Séries Negras surgem de diversos pontos de origem. Você poderia falar especialmente das imagens que foram construídas sob a atmosfera do livro “Em louvor da sombra” (1933) de Junichiro Tanizaki? Em que medida a intenção de “expandir os limites do papel” e “criar espaços sem fronteiras” com o negro profundo – característica presente no trabalho que você apresenta no Paço - tem relação com os escritos de Tanizaki?
Y: O trabalho foi dedicado a Tanizaki e fez menção ao ensaio que discorre sobre a concepção do belo na cultura japonesa e a predileção das coisas vistas à penumbra. Revela também certo mau humor do autor para as influências dos hábitos ocidentais crescente no Japão da época, como a luz incandescente proveniente da energia elétrica. Ironicamente minhas imagens são produtos dessa artificialidade, da luz que vejo como manchas de cor sobre o preto.
A estética japonesa guiada pelas sombras se relaciona com a apreciação do oculto, daquilo que é sugerido, sem jamais, revelar-se completamente. É comum na arquitetura que as coisas sejam guardadas no fundo, quando valiosas. Diferente das igrejas, de frontalidade destacada e pontos centrais no mapa de uma cidade, os espaços sagrados japoneses são instalados no fundo, acessíveis após percorrer-se por uma trilha, passando por pontes e portais.
Voltando à Série Negra:Makie, ela é desdobramento da Série Negra [ou Sombras para Junichiro Tanizaki], explorando, desta vez, o espaço expositivo, pensando modos de enfatizar a imagem e reduzir, em medida precisa, a materialidade sedutora do metacrilato. Mais uma vez a resposta veio pelo ensaio de Junchiro Tanizaki, no diálogo que tentei estabelecer entre a sala, os pretos brilhantes da laca japonesa e do metacrilato.
A Série Negra existia antes de relacioná-la com Tanizaki, essa ideia de juntá-los surgiu durante a edição das Cinco dedicatórias. Mas acredito que só consegui entrar a fundo no ensaio do autor depois de iniciar meus estudos sobre a estética japonesa e de como esses valores influenciariam a percepção.
M: Teus trabalhos podem ser lidos a partir de camadas diversas e quase infinitas, sejam elas por meio do material utilizado, pela sintaxe construída, configuração formal ou ainda por seus aspectos conceituais. Há uma relação forte entre o espaço físico interferido e/ou construído e o sentido de desenho como ação, como por exemplo, no Projeto Hasamiyama e em Studio Games. Em Série Negra: Makie para o Paço, essas características permanecem de modo sutil, já que é um espaço negro “imersivo” no qual o espectador vai colocar-se. Quais as relações possíveis entre espaço e desenho existentes no trabalho do Paço?
Y: Não penso desenho como bidimensionalidade (oposta ao tri) ou como linha (oposta a massa de cor), mas como visualidade. Como ação, talvez o desenho funcione como esquema ou jogo que se oferece ao espectador como exercício de percepção ou imaginação. No caso de Série Negra: Makie, as imagens pediam um cubo preto, não como busca pela imersão, acho que não há imersão para dentro das imagens do trabalho. Talvez a imersão esteja no contexto onde a obra se apresenta, no caminho labiríntico que o visitante passa até chegar na sala do trabalho, entrar nesse ambiente escuro e verificar alguns poucos trabalhos na parede dos fundos; perceber que as imagens são pequenas, sequenciadas e portanto solicitam observação atenta. Há ainda, a leitura de um trecho do ensaio de Tanizaki e a tentativa de relacionar texto e a imagem...
M: O “componente fundador” também me intriga e percebo que ele pode existir em alguns casos. Em outros, tal elemento não seria necessariamente “fundador”, mas “gerador”, uma espécie de “imagem geradora” do trabalho. Em paralelo com o que você mencionou sobre as técnicas ou retóricas japonesas, esse componente, na “Série Negra: Makie”, seria mais “gerador”, numa ligação com o mitate porque desencadeia o trabalho e o pensamento conceitual sobre a sombra, o negro, a ausência de luz em relação ao universo de Junichiro para depois ganhar certa “autonomia” na expansão simbólica?
Y: Acho que a Série Negra: Makie não seria o mitate de Em louvor da sombra. Eu diria que as janelinhas no fundo preto seriam mitate do ouro na laca preta. E a sala onde se apresenta as fotografias dessa obra tenta traduzir a atmosfera do ensaio de Tanizaki... Na verdade o que achei bonito no honkadori e no mitate é a relação entre a “apropriação” e o “apropriado”, ela é declarada, deve ser reconhecível ao público e penso que a “expansão simbólica” acontece quando o objeto apropriado é observado por um olhar que passou pelo objeto apropriação, atualizando-o, ou vice e versa, quando a leitura do objeto apropriação é expandida pelo conhecimento do objeto apropriado.
M: Na Série Negra: Makie a “observação atenta” pretendida para as imagens claras, as portas/janelas, as “manchas de cor sobre o preto” anulariam a experiência imersiva do espaço físico negro, obscurecido? A imersão, palavra que você evita, seria um tipo de experiência dispersa?
Y: Minha noção de imersão vem muito do cinema. Da caixa escura “feita” para o espectador que mergulhar na trama do filme. Ou seja, ele não está lá na sala do cinema, está dentro da ficção. Não acredito que a sala da Série Negra: Makie seja essa do cinema. A sala escura, as imagens pequenas no fundo preto são tentativas de dificultar o acesso ao recorte definido, claro da fotografia. Se o espectador realmente quiser “entrar” na imagem vai precisar se acostumar à escuridão, aproximar a face, apertar os olhos e tentar descobrir a paisagem atrás da mini-arquitetura. A beleza do ensaio de Tanizaki está nessa experiência, que não seria do ver o ouro em luz plena, mas em iluminação rebaixada, permitindo que o olho vasculhe as nuances do brilho dourado (e de preferência um ouro fosco, que revele as imperfeições do material). Por isso, essa experiência não me parece imersiva (que me tira do aqui) ou dispersa (que não importa se estou aqui). É claro que o visitante está mergulhado no escuro, mas o tempo todo está na sala. Talvez essa experiência que relata Tanizaki dialogue com a meditação: não sou praticante, mas em poucas tentativas percebi que a concentração consistia na percepção consciente dos cinco sentidos no aqui e agora (em lugar escurecido) no esforço de interromper o fluxo do pensamento. A sala do trabalho não tem esse caráter extremo, mas acho que a experiência vem um pouco dai.