RaioVerde, ou o último raio de luz do sol, é um duo que surge como processo de construção partilhada entre Camila Fialho e José Viana.
Thais Rivitti
ENTREVISTA INVERTIDA
Thais Rivitti
No e-mail enviado por Camila Fialho e José Viana, eles me informavam:
Nesse último mês, o trabalho se deu na Oficina Santa Terezinha, no pouco que resta da indústria na região portuária de Belém, junto com dois proprietários locais, um fundidor e três ajudantes.
Não era a primeira vez que ouvia falar desse lugar. A existência dessa antiga metalúrgica, situada no Porto do Sal, na cidade velha, em Belém, já tinha chegado aos meus ouvidos por outros artistas que haviam trabalhado lá dentro. Houve até uma ideia de transformar o espaço num centro cultural. Trata-se de um galpão que hoje não é muito utilizado, pois os trabalhos escassearam. A fábrica tem um modo ainda bastante artesanal de fazer as peças em metal sob encomenda.
A ideia era trabalhar com o ferro extraído nas minas do sul do Pará, de onde já trouxemos pedras em estado bruto no trabalho S11D (ou projeto para salvaguardar pedras). Mas, no processo de pesquisa, descobrimos que não haveria o ferro em sua primeira condição (gusa) para ser comprado localmente. Se não a totalidade, grande parte do que se produz segue para exportação.
Carajás, no sul do Pará, região rica em minério de ferro, é uma zona onde muitas siderúrgicas foram construídas. Mas essa infraestrutura criada há alguns anos hoje está sucateada e, ao que tudo indica, cada vez mais, a Vale reina soberana na região. O extrativismo mineral – e o ferro encabeça a lista – é parte importante da economia do estado que acaba exportando tudo, ou quase tudo, o que retira da terra. Não custa lembrar que o extrativismo aqui diz respeito a uma riqueza não renovável e, portanto, com prazo para acabar. Discutir a extração dos minérios, sua manipulação industrial e comercialização coincide com discutir os alicerces da economia local, a ação da Vale e das outras siderúrgicas. Evidentemente, isso implica numa série de problemas, não apenas econômicos, mas também ambientais e sociais. Ao escolherem o ferro como matéria prima básica de seu trabalho, Camila e José tocam nessa complexa rede de relações, que envolve as minas, as indústrias, o escoamento da produção e um tipo de economia baseada no extrativismo, tal como nos primórdios do Brasil Colônia.
Para prosseguir com nossa intenção, reciclamos peças de ferro já produzidas que, sob o alto calor dos fornos, tornaram a virar líquido para ganhar formas novas. Em vez de um processo industrial, o passo a passo do trabalho foi artesanal. O tempo controlado da esteira de produção se perdeu no ritmo indeterminado do corpo, sem precisão, e as novas peças foram forjadas.
Trabalhar com o ferro é, também, trabalhar com a paisagem local, coisa que os artistas vêm fazendo há algum tempo, em obras que discutem a ideia de uma paisagem-produto. A paisagem exótica é vendida como mercadoria nas agências de turismo – para isso basta lembrar que recentemente um dos únicos museus de arte contemporânea de Belém correu o risco de virar um novo “polo gastronômico” para atender, sobretudo, o desejo de investidores externos. A paisagem também é vendida como matéria-prima para indústrias internacionais. A ação dos artistas no trabalho do Paço das Artes regressou à escala artesanal. As peças de ferro que vemos na instalação foram feitas uma a uma e guardam imprecisões próprias desse processo. Entretanto, embora a esteira da fábrica não tenha sido utilizada, ela reaparece na montagem do trabalho que exibe as peças em uma sequência encadeada, ritmada como se tudo ali estivesse em movimento.
O ferro é derretido em um forno cilíndrico com uma bomba que sopra vento por baixo. A meia altura, o fundidor abastece o cilindro com ferro reutilizado, carvão mineral e carvão vegetal. Para cima, a boca do forno cospe labaredas em um ambiente tenso. Para resistir ao calor, as paredes do forno são protegidas por barro. Desse mesmo material são feitos os bicos que travam o buraco por onde passa o ferro derretido que vai encher as panelas num derramamento de fogo líquido em moldes feitos de areia, frágeis em sua estrutura, mas resistentes no cumprimento de sua função.
A descrição sobre como as peças foram feitas segue o processo de fabricação industrial, mas em menor escala e de um modo mais improvisado. Nessa feitura mais artesanal, e, portanto, mais arriscada, as etapas e componentes aparecem com mais clareza. A fabricação nesses termos parece restituir a continuidade perdida na linha de produção. Aqui, os operários e os artistas não perdem de vista o produto final. Não há divisão possível e todos acompanham a operação de cabo a rabo.
Ao saírem do chão, resfriadas, as peças mostram o número 330. Seria interessante fazer uma publicação, um poema síntese, a partir dessa palavra-matéria?
330 peças que ostentam o número 330 estão espalhadas pelo espaço expositivo. São cubos de arestas arredondadas pendurados por cabos de aço que flutuam fazendo um percurso oscilante que somos convidados a percorrer. A palavra-matéria, como bem dizem os artistas, está em alto relevo em cada um dos fragmentos. 330 não diz respeito às dimensões das peças nem a seu peso. Guarda um segredo importante para a construção da obra que não é revelado imediatamente. Só depois eles me dão uma pista sobre o que pode ser seu referente. Pista confirmada no site da Vale onde podemos ler: “Estrada de Ferro Carajás: o caminho onde passa a nossa riqueza. Ela tem 892 quilômetros de extensão, ligando a maior mina de minério de ferro a céu aberto do mundo, em Carajás, no sudeste do Pará, ao Porto de Ponta da Madeira, em São Luís (MA). Por seus trilhos, são transportados 120 milhões de toneladas de carga e 350 mil passageiros por ano. Circulam cerca de 35 composições simultaneamente, entre os quais um dos maiores trens de carga em operação regular do mundo, com 330 vagões.” A esteira da fábrica se transforma em trem, a linha de produção em via férrea para escoamento de mercadoria, que corta no norte brasileiro fazendo essa viagem “de mão única”.
As peças de ferro passam então por nossas mãos. Atenção e refinamento sobre cada uma delas: lixa, lima, limpa. Uma cadeia produtiva desprovida de função, carregada de inscrições brutas, furadas uma a uma pelo cuidado de mãos operárias, para serem trabalhadas sutilmente no espaço.
O Brasil não teve uma arte minimalista. Vivo em São Paulo, a terra das chaminés, meu avô foi operário. Tivemos um presidente operário. Tivemos artistas operários. E como a arte brasileira refletiu sobre o processo de industrialização do país? O trabalho da Camila e do José transforma um processo industrial em um processo artesanal. Os furos que atravessam cada pequena parte dessa instalação permitem que os módulos sejam suspensos e permaneçam no ar flutuando.
Acompanhando uma parte da montagem vi que o procedimento de fazê-los se elevar não se dava sem dificuldades, afinal, cada um desses cubos pesa mais de um quilo. Decidir alturas, medir as cordas e, alicate em punho, construir um a um o mecanismo capaz de sustentar o ferro. Costurar, amarrar. A leveza com que a vemos a instalação não tem nada parecido com a premissa minimalista de expor os materiais tais como são. Aqui, o arranjo vai para além da serialidade contínua e repetitiva, típica das fábricas. Cada trecho do trabalho tem uma velocidade e aparece de modo diferente diante de nossos olhos. Termino pensando de que modo esses solavancos contidos no modo de articulação do trabalho no espaço refletem, a sua maneira, o processo de industrialização no Brasil.