-Então cortamos um trecho da conversa, sem início e final bem demarcados.
- Eu acho que você deve construir minhas falas.
- Você toma seu café com açúcar?
- Sim. E leite.
- Certo. Começamos nossa entrevista discorrendo sobre as decisões que constituem sua estratégia de construção. Sem deixar de fora todos aqueles ruídos do ambiente e da situação de conversa, o tipo de material que costuma ser apagado na edição. Faz todo sentido!
- Um procedimento análogo ao dos trabalhos.
- Isso. Podemos nos valer da ideia de enquadramento para delimitar um território a partir do qual apontamos um conjunto de problemas e, assim, encadeamos o diálogo articulando elementos do repertório mobilizado pelos trabalhos. Tenho uma lista de questões pertinentes, mas esse formato reduzido não permitirá sugeri-las.
-Ainda assim, uma vez que gravamos a conversa, podemos construir nossa entrevista com trechos editados e reorganizados em seqüência estruturada de diálogo entre entrevistador e entrevistada.
-Como no procedimento de realização dos vídeos. Você faz uma série de registros, e depois os retoma e seleciona o que interessa. Existe neles um substrato comum?
-Em geral, eu trabalho com materiais que estão ao alcance das minhas mãos, com as condições dadas pelo ambiente do ateliê. Câmera fotográfica e de vídeo, recortes de imagens que me são referências, impressos variados, filmes e músicas que estou escutando e assistindo, meu computador, materiais como gesso e pó de grafite, a própria mesa do ateliê, enfim.
- O pensamento segue uma estrutura narrativa?
- Sobre isso me interesso pelo modo como o narrador de “Textos para nada”, de Samuel Beckett, interrompe a si mesmo para refletir sobre aquilo que esta a fazer. Ou seja, como passa a falar sobre o próprio ato de narrar. Essa situação evidencia um dado de temporalidade e um teor auto-reflexivo que entendo compartilhar no meu processo de trabalho.
-Você entende o “para nada”, do título do livro, como uma negação de finalidade, de forma que o texto não poderia visar outra coisa que não o próprio ato de narrar?
- É curioso que "nada", bem verdade, não existe. Assim como o silêncio “absoluto”, por exemplo, também não existe. John Cage evidenciou isso em seus experimentos. Penso em 4’33’’. Os pequenos ruídos produzidos pelo público constituíam a matéria sonora da peça no auditório. Teve também uma outra situação em que, dentro de uma cabine de vedação de som, Cage se percebeu ouvindo os processos que ocorriam no interior de seu próprio corpo.
- Em alguns dos vídeos, você lida com imagens de pinturas consagradas na história da arte, manipulando recortes de reproduções de pinturas de Manet e Van Gogh, mas também de peças do figurino desenhado por Malevitch para uma ópera futurista, além de fotografias antigas. Estas articulações contemplam também trechos de filmes de Kurosawa e de músicas dos Mutantes, aproximando referências audiovisuais, imagens estáticas e em movimento, por meio de sobreposição e justaposição de elementos.
- E também me coloco em cena, movendo objetos com as mãos e me deixando aparecer como reflexo na tela do computador.
- Como está a bateria do celular?
-Acho que tem o suficiente pra gravar mais um tanto.
- Ok.
- Quando estou trabalhando em um vídeo, imersa, só entendo o que acontece até certo ponto. Mas e se eu pudesse registrar meu pensamento enquanto ele me ocorre na prática, enquanto lido com estes materiais, a partir de fora? A câmera traz esta outra perspectiva, re-significando pequenas ações.
- A câmera funciona, então, como um dispositivo ágil que possibilita o exercício de registrar pequenos acontecimentos e situações improvisadas?
- Sim. E o registro me permite entender a ação pela perspectiva do enquadramento. Assistir ao que foi feito pode ser bastante instigante, porque é um momento em que uma condensação do pensamento, deslocada, se abre para outras possibilidades de sentido.
investigações em VÍDEO:
Raphaela Melsohn
Frame de Déjeuner sur Kurosawa, 2014
Vídeo, 2’58’’
Yudi Rafael
Yudi Rafael é co-curador do projeto Residência Artística Cambridge, na Ocupação Hotel Cambridge, centro de São Paulo, e curador do programa de exposições Corredor 397 - 2016, no Ateliê397. Foi curador-assistente do Ateliê397 em 2015 e colaborador da Bazaar Art Brasil. Foi curador da exposição coletiva "primeiro de maio" (São Paulo, 2015) e de "1:1" (São Paulo, Casa Contemporânea, 2014), individual de Shima. É graduado bacharel em Ciências Sociais pela UFSC e especialista em Arte: Crítica e Curadoria pela PUC-SP.