Kiki Mazzucchelli
É em vão que dizemos o que vimos; o que vimos nunca reside no que dizemos.
Michel Foucault…Há uma mulher, um homem. Uma escada, que talvez leve ao lugar onde talvez eles se encontrem, talvez secretamente, uma vez por semana, ou talvez mais do que isso, ou talvez nem isso, talvez nem se conheçam e talvez a escada não leve a leito nenhum. Ou talvez leve ao leito onde deita vestida a noiva que se despe na periferia do Rio ou Manaus…
Imagens que sugerem antes um desfecho iminente do que uma memória preservada em luz, as fotografias de Orlando Maneschy são permeadas por uma narrativa viva e incompleta que se constrói apenas por meio das conexões estabelecidas com as memórias, desejos ou fantasias do espectador. A nós não é explicitado quem exatamente são essas pessoas, que lugares são esses; naquilo que é omitido, “um” se torna “múltiplos”. E assim, sem um princípio organizador que determine um sujeito, que restaure o poder de um único significado, identidades são estilhaçadas, já que os códigos que as estruturariam estão em constante movimento: elas podem ser reversíveis, adaptadas a qualquer tipo de montagem, retrabalhadas.
Nesse sentido, as imagens de Maneschy se distanciam da fotografia de linhagem científica, de uma catalogação de personagens urbanos, ainda que, segundo o próprio artista, sua produção tenha sido informada por uma “abordagem antropológica” durante um certo período. Mas se os personagens invariavelmente habitam uma paisagem urbana, não há o rigor, ou melhor, a preocupação em encapsulá-los em categorias imóveis.
Ironicamente, o movimento é aqui um elemento muito evidente, que acontece além da bidimensionalidade inerente à fotografia e, diferentemente do cinema, não ocorre por meio da sucessão de quadros, mas assimila-se mais à uma
assemblage que é o resultado da colisão entre o espectador e a obra. E o que temos, no final, são apenas identidades temporariamente estáveis, prestes a se tornarem outras.