Tadeu Chiarelli
O título desta instalação de Ester Grinspum –
O chão e as mesas –, de início, coloca um quê de familiaridade para o público. Afinal, esses nomes se referem a objetos que fazem parte do nosso cotidiano. Inclusive, são dados da realidade que, de tão comuns, assumem um grau de abstração tão grande que nem mesmo as lajotas mais repletas de ornamentos ou as mesas de
design mais refinadas, conseguem resistir ao fluxo inexorável rumo à total invisibilidade.
Porém, premeditadamente, a familiaridade contida no título da instalação não confere com os elementos que a integram. Afinal, o chão proposto pela artista não é o chão que pisamos – essa espécie de nulidade planar. E nem as mesas contíguas a ele fazem parte desse conjunto de mesas que nos serve em todas etapas de nossas vidas.
O chão e as mesas concebidas por Ester Grinspum retiram dos signos chão e mesa os conteúdos previsíveis, porque a passividade que deles esperamos – a conformidade a todos os estereótipos – está irremediavelmente comprometida naquela instalação da artista.
Vejamos: construindo o seu chão com lâminas moduladas de cobre, algumas retas, outras entortadas pela própria artista, Grinspum cria uma área sobre a qual, em primeiro lugar, podemos passear nossos olhos, não nossos corpos. Chão em que não se pisa, ali, naquela espécie de território demarcado, existe como que uma luta: de um lado, a materialidade das chapas de metal procura manter a própria integridade contra sua capacidade de tornar-se imaterial, de tornar-se apenas fonte de reflexão de luz.
Essa luta, por sua vez, aponta para questões extremamente interessantes e que afirmam a forte peculiaridade da poética da artista.
Módulos de metal justapostos, aquele chão de Grinspum tem como ancestrais os “chãos” de Sol LeWitt, Carl Andre e outros artistas dos anos 60/70.
No entanto, contra o ascetismo minimal das instalações daqueles artistas, (que apresentavam a pura matéria no espaço real), a artista opõe a opulência manipulada – repleta de simbolismo – das folhas de cobre, algumas retorcidas, outras retas.
O valor altamente simbólico do cobre (transmissor de calor, de vida/Beuys), aliado à sua capacidade refletora, e à manipulação da artista, reafirmam, de imediato, o distanciamento da proposta de Grinspum de alguns aspectos da tradição moderna dos quais LeWitt e Andre, em muitos sentidos, foram guardiões.
Agravando essa dissidência, por outro lado, é preciso levar em conta uma outra luta, visível nesse chão de Grinspum: as chapas de cobre manipuladas pela artista, parecem querer se erguer do plano que revestem e, como materiais de um tipo de escultura muito antigo, sugerem a intenção de conseguirem um pouco de verticalidade, uma verticalidade que as exclua da possibilidade irremediável de assumirem a identidade do chão...
Todas aquelas chapas afiguram-se inconformadas pelo fato de, juntas, permanecerem como o lugar de – e no lugar de – uma escultura que dificilmente existirá. Elas, de fato – e dentro de um ponto de vista anterior ao modernismo –, sugerem formar uma quase-escultura, uma escultura que estivesse imediatamente aquém de sua total realização, uma escultura que, apesar de todos os esforços contrários, não conseguiu firmar-se como marco (e a escultura tradicional sempre foi um marco), pois acabou absorvendo e mantendo a planura do lugar...
Totalmente em suspensão, aqueles planos de metal irradiam, refletem, conduzem energia para o espaço, e o calor que deles emana está ali para imantar o ambiente de luz, contrastando, de maneira implacável, com os planos, as mesas da artista.
Estranhas, essas mesas. Escuras, não adaptadas a qualquer regra ergométrica e carregando sacos de seda sob os tampos, funcionam (e parecem mesmo aparelhos) como contrapontos ao chão de luz ao lado. Se ele, lá em baixo, reflete, elas, aqui em cima – com seus tampões de madeira negra –, absorvem luz.
Tomando como certo que os tampos das mesas – em contraposição ao chão de cobre –, absorvem a luz, seria possível pensar, então, que aqueles bizarros sacos de seda agiriam como receptáculos, containers de luz – os únicos elementos que atestam, na instalação, um aspecto de interioridade sempre presente na produção de Grinspum, porém invisível em suas obras mais recentes.
No âmbito da escultura moderna, uma das linhas mais significativas rompeu com o conceito de interioridade – que caracterizava a escultura tradicional – e investiu na exploração da “verdade da superfície” e/ou na especificidade do plano como elemento fundamental para a criação do espaço real. Neste contexto não muito distante da cena artística brasileira contemporânea, volumes fechados eram vistos como alusões à interioridade real e subjetiva do corpo humano – paradigma último da escultura pré-moderna – e, portanto, tidos, pelos modernistas, como elementos negativos ou retrógrados.
A trajetória de Ester Grinspum vem se pautando, justamente, na busca incessante de uma interioridade e também de um mistério que se opõem, de maneira fundamental, à clareza e à lógica construtiva, que pautaram certos postulados da modernidade, com fortíssimas ressonâncias na arte brasileira até hoje.
Contra essa corrente focada no desejo de comunicação direta, a partir de códigos passíveis de serem assimilados por todos, Grinspum opôs um vocabulário premeditadamente obscuro, subjetivo, constituído tanto de ícones vindos da história da arte quanto daqueles de sua própria formulação.
É evidente que a artista nunca esteve solitária nessa empreitada de busca de uma poética destituída de compromissos comunicacionais imediatos. Outros artistas e mesmo alguns movimentos artísticos do século XX (sobretudo o dada e o surrealismo) poderiam a ela ser alinhados.
Porém, o que cabe afirmar é que, se a busca de uma subjetividade extremada, de mistérios recônditos, e se a procura decidida de uma intensidade absoluta marcaram a trajetória de Ester Grinspum, desde quando ela se expressava apenas por meio do desenho, pode-se dizer que, quando a artista incorporou a escultura à sua poética, fez com que aqueles propósitos migrassem para esse novo território.
Assim, suas esculturas funcionam como peças de obstrução àquele vocabulário moderno – positivo e confiante na lógica e na razão – que, no Brasil, ainda é paradigma.
Suas obras, realizadas com chapas de metal sempre voltadas para si mesmas, formando cilindros fechados (1997), aquelas espécies de labirintos, feitos também de fitas de metal em curvas concêntricas (1999), ou as peças de madeira enrolada, escondida por papel (1994)... Nelas, a busca da interioridade, a busca de um espaço voltado para si mesmo, introspectivo, misterioso e arredio a qualquer contato exterior, parece sempre ter estado na poética de Ester. Parece mesmo ser a base para a sua mobilização no sentido de criar suas esculturas, malgrado toda a aversão modernista...
O chão e as mesas, de Ester Grinspum, justapostos, criam uma zona de tensão onde duas atitudes perante a arte se confrontam e, de maneira problemática, se complementam.
De um lado, uma estrutura modular que opõe a si mesma a negação de toda sua tradição, constituindo-se por meio de um material repleto de opulência luminosa e fortes conotações simbólicas. (Ou seja: mesmo negando seu legado modernista, aquele chão se estrutura, em última instância, como um legítimo herdeiro daquela tradição).
Do outro, as mesas: objetos aparentemente familiares, mas que, a exemplo de uma tradição dada e surreal, subvertem essa suposta familiaridade pela introdução de elementos determinados que a comprometem.
Diferentemente de qualquer artista moderno, não se pode dizer que Ester Grinspum, com essa instalação, esteja numa encruzilhada entre dois caminhos, entre duas vertentes. Ao que tudo indica, a artista optou por operar conjuntamente nesses dois terrenos, tornando ainda mais complexo e rico o debate da arte brasileira atual.
* Ester Grinspum foi artista convidada para a Temporada de Projetos 2002