É intrigante pensar que os pontos de luz que vemos no céu numa noite estrelada vêm de objetos que talvez não existam mais. A luz viajou por muito tempo, chegou aqui, mas o corpo celeste que a emitiu, nesse ínterim, pode ter desaparecido. A luz é indício de uma estrela que havia ali. Houve. A luz é como o eco. Chega a nosso corpo trazendo notícia de outro corpo, de outro tempo.

Estela Sokol constrói objetos que emitem cor-luz naturalmente, sem fios, sem bateria, sem lâmpadas. É a pura cor que acende; indica que dentro de um objeto preto há um miolo amarelo que projeta na parede uma espécie de aura do objeto. Olhar para essas esculturas significa olhar para além da área de suas superfícies externas. É preciso observar o efeito que as peças causam no mundo; assim, perceber o lado de dentro, quase sempre escondido, mas que se faz presente por alterar a cor do chão ou da parede próxima ao objeto. O que a artista faz aqui é explicitar com cores fortes, cítricas, quase fosforescentes e com superfícies negras um fenômeno que em outras condições é tão discreto que se disfarça, imperceptível: o efeito de um corpo sobre o outro, a intersecção de cor e luminosidade entre dois corpos e o resultado dessa soma, sobreposição ou adjacência. Corpo aqui pode ser entendido como objeto escultórico, ou como qualquer outro corpo que talvez tenha aura, inclusive o corpo humano, que certamente emite luz e a cruza com a luz de outros corpos humanos.

O ateliê de Estela Sokol é um laboratório de testes do grau de interferência de um corpo em outro, sempre usando a cor-luz para investigar o rastro que um corpo deixa sobre o outro e a importância de considerar o tempo para entender esses rastros. O que eu falo é rastro de um pensamento que aconteceu há alguns milésimos de segundo. 

A luz da estrela é rastro de um sol do passado. Tudo que temos é então só projeção, reflexo de um momento em que realmente algo aconteceu? Meu relógio perceptivo está sempre atrasado em relação a algo inapreensível em tempo real? As esculturas resultantes da pesquisa de Estela Sokol – mesmo as peças bidimensionais eu chamo de escultura porque são mais corpos do que imagens – me fazem entender tanto estrelas quanto meu corpo como instâncias de um mesmo princípio, vasto, geral e inapreensível, que é um atraso do captável em relação a certo acontecimento em si.

A noção de cor como luz e não como tingimento de superfície é rara, mas, quando aparece, vem de pontos luminosos na história da arte contemporânea como James Turrell, Dan Flavin e Hélio Oiticica, cujas obras reverberam o inapreensível. O trabalho de Estela Sokol rebate a luz desses artistas, mantém a pesquisa sobre a cor-luz – índice de algo mais – viajando no tempo até chegar a nossos corpos. 

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Estela Sokol e o habitat natural da obra de arte

A insuficiência das estruturas de museus e galerias de arte, por mais avançados que sejam, é hoje em dia flagrante e trai, em muitos casos, o sentido profundo, a intenção renovadora do artista. Lembro-me de como Mondrian, por exemplo, é injustiçado ao ser colocado tão esteticamente dentro de vidro, em larguíssimas molduras inteligentemente boladas para suas obras, em lindas salas como um acadêmico cafona qualquer.

Talvez não tenha Mondrian deixado nenhuma específica instrução quanto a isso; mas, quando vemos as fotos de seu ateliê em Nova Iorque, com a ambientação que criara para a condição, para o nascimento de cada obra sua, vemos que estas 'viviam' muito mais ali, antes de entrarem no consumo 'cultura-comércio' em que se transformaram posteriormente, guardadas delicadamente atrás de grossos vidros em salas atapetadas etc. Por que então, para sermos fiéis ao pensamento do artista, não se reconstituem os seus ambientes pelas fotos?

Esse trecho de um manuscrito de Hélio Oiticica traz à tona a questão do ambiente em que a obra de arte nasceu. Como tirar um peixe do mar e colocá-lo num aquário, retirar uma obra de um ateliê e transferi-la para um espaço institucional de exposição ameaça descontextualizá-la. Com peixes já nascidos em aquários, o risco é menor. O artista contemporâneo sabe que sua obra um dia sairá de do ateliê, e as cria, como quem cria filhos, esperando esse dia. Estela Sokol, no entanto, tem refletido sobre o habitat natural da obra e, em montagens recentes, optou por levar para a galeria a espontaneidade das paredes de seu ateliê multicolorido na Barra Funda. Para a capa do folheto da Temporada de Projetos 2010 do Paço das Artes, escolheu uma fotografia do ateliê. A casa da obra é parte de sua gênese. Estamos muito acostumados a ver a obra como um produto na prateleira bidimensional do cubo branco. O ateliê, quando exposto, mostra o processo criativo irrompendo, as etapas da pesquisa, as crenças do artista. Estela Sokol acredita nos pressupostos estéticos lançados pela Bauhaus: a forma como corpo das ideias, o design preciso, sem firulas, transbordando para a harmonia dos espaços. A artista, assim, constrói uma mente quieta e estável para os ambientes físicos. Talvez por isso suas obras tenham auras radiantes que se projetam nas paredes. Atentar para o ambiente de criação das obras é ver o processo criativo explodindo. Não interessa só o que o artista expõe, mas como expõe ou como deixa-se expor.

Paula Braga, novembro de 2010




Clarabóia

Estela Sokol

  • Um dia de luz perfeita e exata (2010)
    série de relevos em acrílico e PVC, pinturas sobre mármore e madeira 
  • Detalhe de Um dia de luz perfeita e exata (2010)
    série de relevos em acrílico e PVC, pinturas sobre mármore e madeira
  • Vista parcial da exposição Clarabóia, de Estela Sokol (Foto: Divulgação)
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Paula Braga

Paula Braga é doutora em filosofia da arte pela FFLCH-USP e mestre em história da arte pela University of Illinois. Organizou o livro Fios Soltos: a arte de Hélio Oiticica (Perspectiva, 2008) e escreve sobre arte contemporânea para revistas como Ramona (Buenos Aires), Arte al Dia International (Miami) e Concinnitas (Rio de Janeiro). Atualmente é pós-doutoranda no Instituto de Artes da UNICAMP.

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