Carlos Eduardo Riccioppo entrevista Marcelo Amorim
Carlos Eduardo Riccioppo: Todos os seus trabalhos são baseados em imagens que você recolhe, sejam suas ou não, o que também ocorre na sua mostra no Paço.
Marcelo Amorim: Eles vêm de uma pesquisa de imagens, o repertório é definido previamente. Nessa mostra, parto de um tomo de uma enciclopédia chamado “Fazendo e brincando”, que ensina a fazer o próprio brinquedo (papier mâché, esculturas com sabonete, brincadeiras e jogos). A produção editorial é norte-americana, dos anos 50. Eu parto das ilustrações e dos textos e os depuro. Em uma ilustração, uma plateia assistia a um mágico num palco, e havia uma grande narração. Na redução, ficaram a plateia e uma só frase. Eu já vinha usando essas imagens tendenciosas; mas, nessa série, por conta do texto, as pistas ficam mais claras.
CER: Seus trabalhos anteriores eram lavados, velados, e isso parece derivar do estado de conservação das imagens utilizadas. Nessa nova série, há algo do modo como as ilustrações eram feitas antigamente —as linhas a nanquim e as manchas em aquarela são adaptadas para outros materiais, mas o modo da imagem é respeitado. Se há memória no trabalho, não se trata de um lugar a se voltar com nostalgia. As ilustrações têm caráter didático e são repletas de conteúdo moral. Mas, além disso, há os códigos de representação por meio dos quais essas fichas de educação moral eram produzidas —traços limpos, contenção no emprego dos materiais, economia de gestos, seleção dos efeitos. A memória não é o lugar de escape do trabalho; a infância não é o lugar da liberdade; a pintura e o desenho são também contidos...
MA: Todo mundo teve a mesma infância, com as mesmas fotos; não se trata, pra mim, de uma saudade; é mais um luto, uma perda da inocência, uma constatação de que nós todos passamos por isso —antes de ela aprender qualquer coisa, você tem que conter a criança. As pinturas começaram amareladas porque eu trabalhava com slides; depois, eram violáceas e magentas, as cores das fotos quando ficam velhas. O trabalho tem muito de uma observação das próprias imagens, de seu desgaste. A imagem propõe o resultado. Meu trabalho não parte da pintura, mas de uma pesquisa de imagens —as pinturas querem desaparecer, são de uma paleta quase branca, são velaturas...
As imagens são também de um ideal de comportamento de infância que não éramos capazes de cumprir —a gente não conseguiu ser o melhor bicho do zoológico ou dar “o pulo do gato” (e se conseguiu, tanto pior). Essas imagens não são limpas, nem nulas; elas têm trauma, têm drama...
A gente internaliza isso e começa a ser vigia de si mesmo, sofrendo os efeitos daquilo mesmo que se trate de uma denúncia que já foi feita. As imagens têm uma dualidade. Na série Big Arms, a pintura é fantasmagórica, mas dourada; os homens são fortes, tem um lado sexy —a gente quer se encaixar, se identificar com aquilo. É sempre um lugar de dívida. Eu também lamento não ter feito “o pulo do gato”, embora ache injusto...
CER: A mesma desilusão com a infância, com a memória, também está na imagem, nos seus procedimentos —o traço é contenção de gesto.
MA: Ele é contido. O volume de branco que tem no papel tem um pouco dessa pressão, além da pressão de desenhar certo.
CER: A ilustração é dos anos 50, não deveria fazer sentido hoje, mas tem alguma coisa disso que talvez a sintetização dos seus trabalhos faça reaparecer —daí o drama. Isso acontece também, de outro modo, no trabalho em que você se fotografa e veste a fotografia; a cara fica alongada, repuxada, deformada. As coisas ficam estranhas...
MA: Eu observo e detecto como são terríveis algumas imagens. Tem uma coisa desiludida, melancólica, talvez; acho que o meu trabalho já foi mais violento; hoje, alguém pode passar e dizer “olha, que bonitinho”.
Tudo é bonito porque a gente gosta de austeridade; se a pintura detecta alguma corrupção nessas imagens, ele faz isso talvez também por conta da beleza do resultado dos trabalhos, que é emprestada de um gosto pela imagem que se apaga, que se deixa velar.
Eu acho que o deslocamento do contexto faz isso também. As crianças têm as mesmas fotos; os pais tiram as fotos. E elas são estranhas mesmo... Eu digo, falar de memória, no meu trabalho, não é “o meu travesseiro”, “o meu ursinho”...