José Augusto Ribeiro
O lugar do trabalho de Carla Zaccagnini nem sempre é um só. Por vezes, a proposição acontece em trânsito: quando não importa saída nem chegada, mas o que está e o que se passa entre um ponto e outro. Essa distância, a dilatar também o tempo da fruição, se apresenta como um intervalo, um lapso ou uma incongruência entre a imagem do trabalho e os caminhos a serem percorridos por indução desta mesma imagem.
O que existe para ver é elemento propulsor, não o fim. Nada do que se oferece à visão está ali por completo. Algo se perdeu no meio do trajeto, e o visitante, se quiser, deve seguir pistas e rastros deixados pela artista, até que o percurso se feche ou dê início a um outro. “Chegar lá” nunca é conclusivo. Ao contrário, o convite feito ao espectador para colaborar na realização de um projeto coloca-o diante de uma perspectiva que se recusa a tomar a atividade artística por auto-suficiente. Agora, nesta exposição, até a ilusão de totalidade da “obra de arte” faz parte de um todo que, por sua vez, diz respeito às partes.
O fragmento e o trecho, a incompletude e a parcialidade são matéria e assunto de “Abstração e referência”. O projeto em andamento teve início em 2005 e consiste de uma série de dípticos. Cada um deles é formado por uma folha de papel translúcida com desenhos a grafite de linhas paralelas e um número, exposta sempre ao lado de uma folha de papel o/aço com ficha técnica do trabalho e a referência bibliográfica de um livro de literatura – por enquanto, somente brasileira.
No painel expositivo do Paço das Artes, os desenhos são abstrações em que quase todos os elementos estruturais se mantêm equidistantes entre si, apesar dos traços feitos sem o auxílio de régua ou coisa que o valha. Um conjunto de linhas demarca pautas, um espaço regular, enquanto outras parecem interrompidas, no meio do caminho constituído por seus pares. Os numerais restam em órbita, nalgum canto da parte superior ou inferior do papel. E estes são os gabaritos.
Ou melhor, serão gabaritos caso o visitante se disponha a retirar os desenhos do museu, levá-los à biblioteca central da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e procurar, com a orientação das referências bibliográficas, a edição a que correspondem aquelas linhas e números. Fora da instituição que lhes confere sentido estrito e, mais especificamente, entre as páginas dos títulos selecionados por Zaccagnini, os numerais se sobrepõem à impressão gráfica e eis que a abstração se torna uma sublinha.
Os excertos assinalados revelam falas sobre a procura, o vazio, o oblívio, o que é parte de um complexo. Tá certo, fica mais um pedaço, porque toda ação leva a mais um “pedaço”. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas. Mas, ainda que desvendes o conteúdo das entrelinhas, leitor amigo, nem tudo se lhe mostrará por inteiro. O real, por exemplo, se dispõe para gente é no meio da travessia. E casa travessia é uma, não se repete.