Cyríaco Lopes
Um relógio de sol feito de gelo. O nonsense de uma máquina cujo funcionamento é um meio de autodestruição. O sol é a peça dessa máquina em dois níveis, tanto é o parâmetro de medida para o tempo-duração, como instala o tempo-condições atmosféricas, numa interseção dos significados da palavra tempo. Mas essa interseção é provisória e frágil, logo trona-se batalha. O calor faz o instrumento de medida entrar em colapso.
De fato, é no período desse colapso que o trabalho de Luiz Cavalheiros realmente acontece. Seu interesse está nesse "entre", e na angústia a ele implícita. Antes há o momento ideal em que a forma e a ideia do relógio estão inteiras e coesas. Um instrumento de medida asséptico, que divide a experiência sem se imiscuir nela. Depois há a total dissolução no mundo, de forma e de ideia, já sem bordas para a natureza. Nesse estágio não há mais duração, pois não há mais divisão. É no processo de transformação de um estado a outro que a poética de Cavalheiros surpreende a fragilidade dessa inscrição no mundo, dessa tentativa da figura de destacar- se do fundo, da vida de destacar-se do inanimado, da consciência de destacar-se da não-consciência.
Enquanto derrete, o relógio ainda é um relógio, mas tornado qualitativo. Vê-Io ainda nos informa da passagem do tempo. Não um tempo impessoal e criado pela razão, mas um tempo que funciona fisicamente, que marca o mundo por meio da degradação.
Esse objeto passa a funcionar como o relógio mental e interno humano, que só é capaz de medir períodos de tempo de maneira afetiva. O agora é definido internamente como o ponto onde o desde termina e o até começa. Esses dois outros pontos, o desde e o até, instauram períodos de tensão com o agora, que compõe nossa vida interna; histórias que inventamos como memória, ou como projeção.
Na poética de Cavalheiros pode-se perceber a construção do Sujeito como um jogo perdido de início, pois construído com o espólio da memória (1) - composto de perdas - e a ansiedade da projeção - condenação à morte. Esse vão que o sujeito usa para se equilibrar entre as duas angústias é, necessariamente, o lugar da melancolia.
O congelamento do Sujeito nessa situação de eminente perigo, de melancolia, também pode ser definido como trauma, se seguirmos a formulação que o crítico Hal Foster utilizou para enfocar a arte produzida nas duas últimas décadas. Segundo ele: "Across artistic, theoretical, and popular cultures (in SoHo, at Yale, on Oprah) there is a tendency to redefine experience, individual and historical, in terms of trauma. On the one hand, in art and theory, trauma discourse continues the poststructuralist critique of the subject by other means, for again, in a psychoanalytic reqister, there is no subject of trauma; the position is evacuated [ ... ] On the other hand, in popular culture, trauma is treated as an event that guarantees the subject, and in this psychologistie register the subject, however disturbed, rushes back as witness, testifier, surviver. [...] In trauma discourse, then, the subject ts evacuated and elevated at once" (2).
A esse registro histórico, o trabalho de Luiz Cavalheiros está, ao mesmo tempo, em sintonia e em desacordo. Por um lado compartilha com a geração internacional de artistas das duas últimas décadas essa angústia da instabilidade do Sujeito no mundo, causada pelo contínuo desmantelamento dá positividade do tempo projetado. O evolucionismo, e as ideologias a ele ligadas, conferia um confortador ponto-âncora no futuro. O século XX, no entanto, desbaratou esse ponto-de-chegada. Especialmente nas duas últimas décadas, parece que a noção de que não vamos chegar em Utopia se popularizou como falha.
É na atitude perante essa falha que o trabalho de Cavalheiros se destaca sutilmente desse contexto. Porque nesse acordo do trauma comum, em que o passado é falho e o futuro uma repetição impotente da melancolia, toma-se por pressuposto que não há lugar para uma opinião geral, mas confissões (de culpa e de socorro). Espera-se conquistar empaticamente o outro, em um sentido humano e próximo. Mas em Luiz esse sentimento romântico é tratado com a frieza de um experimento científico.
Não conheço, até agora, um único trabalho de Cavalheiros que use elementos diretamente biográficos, algo que nos conecte à sua vida particular. A possível exceção é a utilização do eletrocardiograma de um teste de esforço em Mundo Invencível (3). No entanto, nessa exceção, encontramos a negociação importante para a sua poética entre o corpo e a máquina (o sentimental filtrado pelo inumano). É notável o número delas que utilizou: a copiadora, o relógio, o eletrocardiógrafo, a máquina fotográfica. Muitas delas, máquinas de reprodução. Mesmo aqueles seus trabalhos que não se utilizam de uma máquina implicam, no próprio processo, seu tipo de funcionamento. Várias vezes são uma mecanização da memória.
Imagens Relembradas é exemplar. É a reconstituição sensível e precária, por meio do desenho/"aquarela", de um original - a fotografia - que já era de per se a reconstituição/invenção de um momento. A tinta usada é conseguida mediante a dissolução química das imagens A reconfiguração mental e física funciona em reciprocidade, imperfeita e insuficiente, mas o que importa, é a tentativa de reter o sentido.
E quais imagens despertam esse processo? Imagens menos que comuns. Imagens abandonadas por outros, que preterem suas histórias individuais. Numa operação de extrema pessoalidade, no resgate do passado por meio de um ato sensível, espera-se uma referência que afirme e identifique o Sujeito e o artista, visto que "one cannot challenge the trauma of another" (4). Mas isso não acontece. Descobrimos distanciamento nesse ato carregado de emoção.
Passamos a percebê-lo como estudo, um experimento de laboratório sobre a memória, não sua atuação em primeira instância. O esforço por reconstituir algo que não tem nenhuma importância afetiva ou intelectual (no caso, as fotos abandonadas por outros) é quase oposto ao que vem sendo realizado pelas poéticas surgidas nos últimos anos. Prescinde a identificação pessoal entre artista e público. Abre mão do eu narcísico, para o qual os dramas pessoais se expandem publicamente, em favor de uma curiosidade generalizante sobre os princípios que informam esses dramas.
Esse distanciamento não subtrai a sentimentalidade, palavra-tabu para a arte nos anos 60-70, regra geral nas últimas décadas. O sentimental (5) foi readmitido por esses artistas novos-românticos, por meio da qualidade de suas obras (Leonilson, Felix Gonzalez-Torres). Mas em Luiz Cavalheiros esse sentimental é temperado pela notação científica conceitual, e não é acesso à persona do artista.
Como as velas de Mundo Invencível: quando estão em funcionamento, cumprindo seu destino, estão também perdendo sua condição de potência. Estão no processo de desaparição. São um experimento da deterioração, do acaso e da irreversibilidade da decadência. Porém, sob a placa de vidro, resta a metade intacta, a amostra de comparação. É ali que o artista está.
Notas:
(1) Obsession with memory is prevalent in much contemporary art. A afirmativa está desenvolvida em BENEZRA, Neal; VISO, Olga. Distemper: Dissonant Themes in the Art of the 1990s. Washington DC (USA): Hirshom Museum, 1996.
(2) e (4) FOSTER, Hal. The Return of the Real - The Avant-Gard at the End of the Century, Cambridge, (USA); London, Enqland: The MIT Press, 1996.
(3) Sobre esse trabalho consultar meu texto "Apreensão do Tempo: A Poética de Luiz Cavalheiros", em Anais do 5º Encontro do Mestrado em História
da Arte da UFRJ.1997.
(5) Sobre o assunto, consultar: DEICHTER, David. Sense and Sentimentality, Parket (Zurich, New York, Frankfurt), nº 44, 1995.