Felippe Moraes

Rio de Janeiro - Brasil, 1988

  • Construção, exposição de Felippe Moraes (Foto: Divulgação)
  • Construção, exposição de Felippe Moraes (Foto: Divulgação)
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  • Construção, exposição de Felippe Moraes (Foto: Divulgação)
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Felippe Moraes

Felippe Moraes é bacharel em design de produto pelo Centro Universitário Belas Artes (2010), onde escreveu dois trabalhos de iniciação científica. Iniciou seus estudos em arte na Paint The Creek Center for The Arts em Michigan, Estados Unidos (1996) e continuou na Fundação das Artes de São Caetano do Sul (1998 a 2002). Desde 2009 é membro do Ateliê Fidalga e esteve presente em mostras como Silêncio na Zipper Galeria (curadoria de Paula Braga, 2010), O Peso do Branco (curadoria de Efrain Almeida, 2011) e Boîte Invaliden, na Invaliden1 Galerie em Berlim (curadoria de Josué Mattos e Paulo Reis, 2011). Em 2010, foi premiado em duas categorias no 10º Salão de Guarulhos, o que lhe rendeu sua primeira exposição individual, Orizzonti dell’Uomo (curadoria de Paula Borghi, 2011). No mesmo ano, recebeu a bolsa Santander para cursar o MA Fine Arts na University of Northampton no Reino Unido. (www.felippemoraes.com)

Fernanda Lopes

“Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado”
Construção (Chico Buarque)

Construção é o ato ou o processo, individual ou coletivo, de construir. E é isso que parece interessar a Felippe Moraes: não o que se constrói, o produto final, mas a ação. Ou melhor, a possibilidade de agir, a escolha individual por agir, o livre-arbítrio de cada um. Na exposição Construção, os trabalhos se valem de elementos comuns à construção civil, como prumos, plantas baixas, tapumes, cálculos e ferramentas, que, a partir de sua disposição e das combinações que estabelecem entre si, vão assumindo novas configurações e significados. A canção homônima de Chico Buarque, escrita em 1971, também se vale dessa dinâmica. As mesmas palavras mudam de lugar constantemente ao longo da música fazendo com que a estrutura fixa ganhe novos contornos e significados a partir de pequenas mudanças de palavras.

Logo na chegada, o visitante é recebido por uma sala construída por tapumes magenta. Formando ângulos acentuados e desconfortáveis ao corpo e aos olhos, essas paredes precárias parecem não ficar de pé sozinhas, mantendo-se estáveis graças aos suportes de pinus. Parecem proteger ou preparar o espaço para o que já está por vir, isso sim, em caráter definitivo. Do lado de fora, estão projetados diretamente na madeira os três vídeos da série Encarnado (2010), em que uma pessoa, o próprio artista, trajando um macacão vermelho de operário, habita ambientes da mesma cor executando tarefas absolutamente prosaicas, mas igualmente simbólicas como subir escadas, trocar lâmpadas, andar por corredores, atravessar portas.

Do lado de dentro, estão trabalhos como π (2010). Aqui são escritas manualmente, diretamente sobre a parede com canetas douradas, as mais de mil primeiras casas decimais da constante matemática. Revela-se aqui um processo braçal, altamente mecânico, repetitivo e silencioso. Revela-se também uma proporção numérica que aponta ao mesmo tempo para toda a capacidade e toda a impotência da racionalidade humana. Pi é um número tão preciso que em 2002 chegou a 1.241.100.000.000 casas decimais de exatidão. Mas existe algo mais abstrato que um número com pelo menos 1.241.100.000.000 casas decimais?

Há cerca de um ano, Felippe Moraes escreveu um texto intitulado Olhar para o alto. Nele, começava contando que na ocasião de sua primeira exposição coletiva o curador perguntou: “O que te move?”. Depois de muito refletir, respondeu: “Tudo que nos ultrapassa”. Para o artista, daí em diante, essa afirmação provou-se mais verdadeira a cada dia no sentido de seu trabalho se articular sobre o eterno, sobre o intangível, ou seja, tudo aquilo que está além de nossa compreensão e que sequer sabemos nomear. Talvez por isso a produção de Moraes traga consigo a ideia de religião em seu sentido primeiro: religar.

Ao ver Construção, penso que o que move o artista é na verdade tudo o que em nós, em todos nós, é permanente. Seu objeto é tudo aquilo que nos constitui não como indivíduos, mas como humanidade. Uma humanidade que, ao olhar para o alto, na verdade, exercita o simples ato de olhar para dentro. Afinal, quem inventou a institucionalização da espiritualidade e a necessidade dela?

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Em uma sala, quadros de diferentes tamanhos estão espalhados pelas paredes de maneira aleatória, em alturas diferentes, cobrindo a superfície quase do chão ao teto. Neles, vemos formas geométricas básicas, como quadrados, retângulos, círculos, cruzes e triângulos. Um desses quadros chama a atenção: um quadrado preto sobre fundo branco, colocado em uma quina, no canto superior da sala. Foi na Última exposição futurista de quadros: 0-10, realizada em dezembro de 1915, em São Petesburgo, na Rússia, que Malevich mostrou pela primeira vez um de seus trabalhos mais famosos, Quadrado Negro. Em uma das visitas ao ateliê de Felippe Moraes, o artista me mostrou essa imagem, ressaltando onde especificamente esse quadro estava. Colocado no lugar que a Igreja Ortodoxa Russa tradicionalmente destina aos ícones religiosos, o trabalho gerou debate. A forma foi escolhida pelo criador do Suprematismo (movimento russo de arte abstrata, criado por volta de 1913) porque não podia ser encontrada na natureza, e por isso, não era uma representação dela. Era, então, uma forma construída pelo homem, pelo fazer artístico. Influenciado pelo Construtivismo, o Suprematismo nasceu em um momento de construção do mundo socialista e de forte crença na capacidade do indivíduo (inclusive o artista) de mudar o mundo.

Segundo Giulio Carlo Argan: “O que Malevich propõe, também de acordo com a revolução social e política em andamento (embora seus expoentes se declarem realistas e combatam o ‘abstracionismo’), é uma transformação radical, sem dúvida, porem não ideologicamente finalizada. A verdadeira revolução não é a substituição de uma concepção de mundo decadente por uma nova concepção: é um mundo destituído de objetos, noções, passado e futuro, uma transformação radical em que o objeto e o sujeito são igualmente reduzidos ao ‘grau zero’. Daí as razões de sua dissidência em relação a um movimento revolucionário que transforma uma ordem para instaurar outra, e que produz outros objetos, mesmo que seja para o povo. Para Malevich, no período suprematista, o quadro não é um objeto, e sim um instrumento mental, uma estrutura, um signo, que define a existência como equação absoluta entre o mundo interior e exterior” (1). Tanto em Malevich quanto em Felippe Moraes, quando se fala em espiritualidade, se fala na relação entre o Homem e o mundo externo. Ambos compartilham de uma crença na capacidade de ação e criação desse Homem, e por isso, na sua capacidade de interferir no mundo diretamente, sem a mediação de instituições, como a religião (um sistema de normas de conduta como tantos outros).

Lygia Clark, herdeira da tradição construtiva, ressalta em textos de 1965 essa dimensão espiritual da participação do público no campo da arte: “Tenho refletido sobre o paralelo que existe entre a evolução religiosa e a artística. Desde a arte antiga até a atual, que solicita a participação do espectador, a distância psíquica entre o sujeito e o objeto não cessou de diminuir, ao ponto de se fundirem hoje um no outro. Assim, o Caminhando. A religião, por sua vez, conheceu uma mesma fusão progressiva. Passamos do Deus-Pai, todo-poderoso, ao Cristo, que tem uma dimensão humana. O mesmo aconteceu com a religião grega, em que o Olimpo se aproxima pouco a pouco do Homem, até tomar a sua aparência física. Com Nietzsche, todas as projeções religiosas do Homem para o exterior são rejeitadas, o sentimento religioso se introverte: o Homem é divino. O mesmo ocorre na arte: a proposição, antes percebida pelo espectador como exterior a ele, encerrada em um objeto estranho, é agora vivida como parte dele mesmo, como fusão. Todo Homem é criador” (2). “Agora, o Homem comum começa a chegar à posição do artista. Nunca o Homem esteve tão perto de sua plenitude: ele não tem mais desculpas metafísicas. Não tem mais nada sobre o que possa projetar-se. Está livre da irresponsabilidade. Não pode nem mesmo mais negar-se a ser total. Já que nenhuma transferência é mais possível, resta-lhe viver o presente, a arte sem arte, como uma nova realidade” (3).

Fernanda Lopes 

Notas:

(1) ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. (páginas 324)

 (2) CLARK, Lygia. Arte, Religiosidade, Tempo-espaço, 1965. In: http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=23

(3) CLARK, Lygia. Um mito moderno: o instante como nostalgia do Cosmos, 1965. In: http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=22

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