Diego de Santos
Diego de Santos é formado em artes plásticas pelo IFCE (2010). Frequentou o programa Imersões poéticas – Escola sem sítio – Paço Imperial (2017). Contemplado com os prêmios Funarte de Arte Contemporânea (2015-2016) e Prêmio de Criação em Artes Visuais de Teresina – Residência Artística (2016); indicado ao Prêmio PIPA e vencedor na categoria Voto popular on-line (2014) e Laboratório de Artes Visuais Porto Iracema das Artes (2014). Destacam-se as individuais Viagem ao vão, C. Galeria, Rio de Janeiro, RJ (2019); Fato atípico e outros delitos existenciais, Sem Título Arte, Fortaleza, CE (2019); Poema 193, Galeria Fayga Ostrower (Funarte Brasília), Brasília, DF (2017); Lar é onde ele está, Museu de Arte Contemporânea do Ceará, Fortaleza, CE (2014); Um mundo aqui dentro, Galeria Amparo 60, Recife, PE (2011); e Arranha-verso, Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza, CE (2009). Participou de várias exposições coletivas em espaços institucionais e galerias pelo Brasil. Tem obras presentes em coleções brasileiras e do exterior.
Lost na região
Texto de Juliana Caffé
Is There No Bad Wind?, interroga-nos uma biruta suspensa no pátio externo do Paço das Artes, enquanto sinaliza o sentido de deslocamento do vento. Diante das diversas tormentas pelas quais o país vem passando, são muitos os diálogos possíveis de ser iniciados ali, com o objeto. A obra integra Lost na região, exposição de Diego de Santos, artista cearense, natural de Caucaia, onde a frase – na afirmativa – aparece aos montes nas birutas que se espalham pelo litoral, sobretudo em picos de kitesurf, esporte acessado predominantemente por estrangeiros. Personagem central da mostra, de caráter ambíguo e traiçoeiro, o vento, apesar de constituir matéria-prima para o desenvolvimento econômico local, atraindo negócios e turistas, também orquestra a destruição de construções irregulares na linha da costa e boicota propagandas imobiliárias em faixas de ráfia, que Diego de Santos logo recolhe para realizar as obras da exposição. E, então, o artista lança a retórica: não há mesmo vento ruim? Pois para quem?
Observador contumaz da paisagem, dotado de uma curiosidade genuína sobre a natureza das coisas, Diego de Santos tem sua pesquisa centrada na materialidade de objetos do cotidiano. Através da manipulação dos elementos desses objetos, explora a trama de relações que eles compõem no ecossistema, traduzindo para o campo estético a dimensão sensível, conceitual e crítica que eles revelam sobre a paisagem e suas dinâmicas sociais, econômicas e culturais. Nas palavras do artista, esses dispositivos, muitas vezes precários, ganham em seu trabalho atenção e certa dignidade.
Em Lost na região, as faixas de ráfia são o ponto de partida da mostra. Encontradas em abundância na paisagem praieira cearense para anunciar, sobretudo, projetos imobiliários, são feitas de material de baixo custo e dotadas de uma visualidade forte e chamativa pela utilização de tintas serigráficas. Através de longas negociações com a estrutura desses veículos publicitários, o artista tensiona seu significado na paisagem, articulando seus vínculos com a exploração econômica, ambiental e turística do litoral cearense, e trazendo para o discurso da arte questões sobre a capitalização da terra e da ideia de paraíso em regiões tropicais.
A exploração imobiliária no litoral cearense foi inicialmente impulsionada, em meados do século 20, pela prática da vilegiatura marítima pela elite local. A proliferação de casas de veraneio é seguida, então, pela instalação de resorts e luxuosas barracas de praia, que tomam conta do local antes ocupado por populações tradicionais locais. Por outro lado, o regime de ventos no Ceará também vem colaborando com o processo de urbanização da zona costeira, atraindo tanto a prática de esportes náuticos, quanto a exploração de energia eólica para o desenvolvimento econômico. Nesse cenário, as faixas de ráfia com lotes de terra à venda, apesar de ilegais, estão por toda parte. Diego de Santos explica que “o vento forte rapidamente as arrebenta, transformando-as em tufos de fitas coloridas”, que o artista recolhe para o projeto Lost na região, um trocadilho com os anúncios de Lotes na região. A palavra lost alude à presença cada vez maior de estrangeiros no local e, consequentemente, da língua inglesa na paisagem cearense que, segundo o artista, vive um processo de internacionalização.
Em geral, suas peças são desenvolvidas por meio de extensos e complexos processos de pesquisa, negociação, produção e formalização. No Paço das Artes, entre desenhos, pinturas, fotografia, instalação e esculturas, as obras se forjam nos arranjos e rearranjos do artista com as faixas coletadas ao longo de dois anos. O desdobramento da pesquisa nas diversas linguagens e suportes é um traço característico de sua prática no ateliê. Segundo o artista, tudo parte do desenho – “eu costumo pensar manuseando as coisas, como se estivesse desenhando com elas” –, a representação visual conduz, portanto, as experimentações com o objeto, articulando diversos caminhos estéticos para a pesquisa.
Os desenhos são os primeiros experimentos no ateliê – “inicialmente, o interesse era transformar a propaganda desfiada pelo vento em fiapos coloridos”. Colados sobre representações feitas em lápis de cor e lápis dermatográfico sobre sacos de ráfia, esses fiapos simulam a demarcação do território pelos loteamentos, em um efeito gráfico que alude aos desenhos de antigas cartas náuticas. Elementos como a rede, a barraca de praia e velhas pontes de madeira são representados fora de um cenário litorâneo, como vestígios de algo que vem se perdendo com a transformação urbana. Nos desenhos, o apagamento é realizado simbolicamente pelos fiapos de ráfia, que vão aos poucos se sobrepondo aos equipamentos praianos. Jogando ironicamente com os apelos da retórica publicitária, Diego de Santos retoma nos títulos os slogans das faixas, como “entrada facilitada”, “sem burocracia” ou “melhor localização”. Desse modo, não só os materiais são apropriados, mas também o conteúdo dos textos e a natureza própria da propaganda que contamina e polui não só a paisagem, mas toda a linguagem da exposição.
Na série Casa pé na areia, cinco pinturas acrílicas sobre tela retratam cenas praieiras típicas do Nordeste brasileiro. Vistas paradisíacas de uma paisagem tropical mesclam-se a recortes de reclames publicitários transferidos diretamente das faixas às telas por sobreposição. A propaganda passa, então, a integrar a paisagem na forma de pequenas casas. Se contrapostas às representações clássicas de paisagens brasileiras, as pinturas do artista suscitam reflexões sobre a transformação das cidades litorâneas, além da ideia de paraíso em países tropicais, tão explorada pelo imaginário social do Nordeste brasileiro, o que aqui não é mero detalhe, já que o turismo vem capitalizando e rapidamente transformando o local.
A ironia está posta pelo artista. Se, por um lado, a propaganda imobiliária busca capitalizar uma experiência estética idealizada, explorando justamente a ideia de paraíso tropical, ela também simboliza a transformação promovida pela capitalização da terra, além de deteriorar visualmente o próprio ambiente agenciado. Se em A 3 min. de ca, 6X25 lançamento e Parcelas a partir 2, portas e janelas enquadram crepúsculos vespertinos e cenas de mar, em No e 85, aparelhos urbanos aparecem suspensos sobre as cores de um lusco-fusco praiano. Há, em todas as pinturas, a contraposição constante entre a paisagem natural e artificial, onde elementos urbanos e rudimentares se misturam em meio a uma atmosfera nostálgica, lembrando-nos de que tudo está em transformação.
Sem entrada reúne um conjunto de cinco esculturas de tamanhos diversos realizadas a partir das faixas de ráfia, que são desmembradas e rearranjadas. As fasquias de madeira envoltas em ráfia pintada articulam-se em pirâmides, e os instrumentos publicitários tornam-se então arapucas, armadilhas feitas para emboscar. O significante das faixas é, portanto, desmascarado pelo artista, que revela alegoricamente a realidade dissimulada pelos reclames.
A fotografia Sem taba registra um exercício performático com as faixas. Na tentativa de compreender as possibilidades de uso do objeto, nunca abandonando, no entanto, sua função na paisagem, Diego de Santos simula uma situação de moradia precária, aludindo à situação das comunidades tradicionais que sofrem com a especulação imobiliária e a precarização de seu meio tradicional de sustento. Suspensa a quatro mãos, uma lâmpada ilumina o cenário que nos remete a precários barracos.
Lost na região reflete, portanto, uma realidade não só cearense e nordestina, mas também brasileira, tocando dilemas de âmbito nacional como o acesso à terra e a exploração da natureza. Em São Paulo, cidade marcada pela questão da moradia, pela guerra dos lugares, parafraseando Raquel Rolnik, onde movimentos sociais lutam pelo direito à cidade, os diálogos são muitos. No Paço das Artes, equipamento cultural público caro ao circuito artístico local, que do campus da Universidade de São Paulo passou a ocupar a área externa de um shopping em Higienópolis, os diálogos são muitos. Relembrando o sociólogo urbano Robert Park, se a cidade é o mundo que o homem criou, também é o mundo no qual ele está doravante condenado a viver. Assim, indiretamente, e sem qualquer clareza de sua tarefa, ao fazer a cidade, o homem faz a si mesmo, constrói e é construído. Afinal, imersos entre fortes ventanias, seguiremos para que direção?
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