Para a Temporada de Projetos do Paço das Artes 2009, o artista paulistano Claudio Matsuno propõe em “Rakugaki” (palavra em japonês para rascunho, rabisco) uma experiência a partir de sua vivência e pesquisa referentes ao desenho. Sua atenção está na técnica, mas, sobretudo, no modo como o observador se relaciona com essa mesma técnica a partir das imagens feitas à mão sobre uma superfície. Se a pintura teve todo o século XX para reeducar a percepção das imagens sobre tela - ampliando seu vocabulário e abolindo a relação direta entre belo e bom - o desenho, confortável em seu papel de coadjuvante para a pintura, se situa (as exceções servem para ressaltar as regras) em um ancestral limite. A ideia de “perfeição” serve ainda como âncora. O desenho correto é o desenho perfeito, reproduzindo a realidade de forma exata ou perseguindo, em sua abstração, o equilíbrio sobre a superfície.
O que interessa a Claudio Matsuno com “Rakugaki” é trabalhar as linhas de um desenho e seu modo de exibição a partir de um outro ponto de partida: o de que um desenho se faz a partir do processo de sua construção. Assim, o rabisco, o rascunho, deixam de ser a parte maldita (o escondido, o não-visto, o jamais observado) para se tornar a própria essência do desenho. Tudo o que a educação artística clássica procura negar -- porque a entende como defeito, vacilação, engano – Matsuno aceita como trajetória, caminho e processo. Assim, suas imagens continuam como “desenhos de observação”, mas o que ele vê não é um objeto ou uma cena. Matsuno observa uma sensação, e de modo intenso, diferentes atmosferas criadas por ela.
Para “Rakugaki”, as paredes serão montadas no espaço expositivo do Paço das Artes, ocupadas por desenhos que ignoram qualquer exigência de narrativa, psicologia ou pathos, realizando, assim, a instalação. Seus desenhos compõem um todo, mas cada uma das peças que o formam é ainda algo inacabado. O interesse de Claudio Matsuno é - a partir de todas suas estratégias frente ao desenho, sua técnica e história - pensar e viver o traço sobre o papel, capturar o momento no qual tudo pode ser possível, fazendo com que seu projeto seja o de conseguir criar e produzir sempre nesse campo da possibilidade: onde o risco livre não é e nem representa a desarmonia sobre o papel, mas se torna o ponto inicial, ou final, de uma intensa relação entre a criação e o mundo.
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A mensagem essencial, por Marcelo Rezende
Se visto como objeto, a instalação Rakugaki se comporta também como obstáculo. Para poder observar os desenhos preparados por Claudio Matsuno é necessário admitir que aquilo a frente parece uma parede, aceita quadros, linhas rabiscadas na superfície, papéis grudados, como uma parede, mas é apenas uma primeira e falsa impressão. Com Rakugaki, uma “parede” esconde uma outra, entra elas se cria um espaço, uma pequena trilha por onde os desenhos continuam, e na parte traseira dessa segunda “parede” (a construção parece flutuar no espaço do Paço das Artes, que sempre enfrenta seu teto baixo) os desenhos estão em papéis mais largos, são menos discretos. Variam em seu resultado. Alguns são misteriosos, quase invisíveis, outros francamente trágicos em sua intensidade. Matsuno acena com diferentes estados, porque Rakugaki não é uma experiência simples, e muito menos evidente. O que ele não fornece são fáceis evidências.
No romance policial clássico, que vigorou do final do século 19 até quase duas décadas do 20, usar as pistas, as tais evidências, era uma operação sobretudo cerebral. Trava-se de trabalhar com um método científico: indução e dedução, análise. Você poderia recuperar toda a história investigada porque ela estava já sendo contada pelo traço deixado, e que se torna evidente quando visto sob o microscópio. No romance policial moderno, a situação é diferente. A investigação se processa por meio de uma intuição, uma coceira na nuca, um certo pressentimento na mente do investigador que depois se torna ação pura. Descobrir a história significa encarar seus protagonistas.
O encontro com o principal personagem na narrativa de Rakugaki, Claudio Matsuno, aconteceu em seu atelier no centro de São Paulo, em uma parte da cidade que guarda ainda um eco das construções paulistanas dos anos 10 e 20. Matsuno ocupa um pequeno espaço de um largo prédio. Ele trabalhava naquele momento com idéias, projetos para a realização de Rakugaki. A conversa passou por sua trajetória, a intenção de trabalhar com o erro e o registro do erro em seus desenhos, sobre seu flerte com a pintura e a técnica de desenho de objetos, sobre a ansiedade do público diante de suas instalações, espectadores que procuram uma história, a narrativa contida ali.
Matsuno fala de sua experiência no campo visual da cidade. Na verdade, fala sobre de que modo ele se relaciona com esse campo. Conta sobre quando se anda pela rua, e uma pessoa passa diante dos seus olhos, e depois que passa, algo fica. Uma vibração, alguma coisa no ar, contida naquele instante. Claudio Matsuno fala do trem que chega e parte, e entre essas ações deixa na plataforma da estação uma atmosfera, algo gravado no inconsciente e que desperta quando executa seus desenhos. Um procedimento, por outro lado, também plenamente consciente, mas que ele não procura reproduzir, porque a questão não é a imitação da forma, mas um encontro mesmo com uma essência, ou, no mínimo, com uma percepção essencial dos instantes do dia.
Espalhado por Rakugaki estão momentos assim, nos quais há uma resposta de Matsuno aos movimentos da existência. Mas aqui as pistas, por mais misteriosas que possam ser, apontam para alguma parte. Se o mundo se apresenta assim, a partir dessas experiências e sensações, Matsuno não as recria simbolicamente sobre o papel. O procedimento é de outra ordem. Como se ele estivesse disposto a reagir a partir da mesma linguagem desses (por falta de um descrição mais precisa...) fenômenos. O que torna Rakugaki, como instalação, um sistema fechado, no qual um campo alimenta o outro. O que torna Rakugaki um desafio interessante: a sua ausência de significado é a essência de sua mensagem.