Clarissa Diniz
Clarissa Diniz
Abaixo, a entrevista entre o artista Guerreiro do Divino Amor e a crítica Clarissa Diniz.
A conversa foi realizada em abril de 2018, no ateliê do artista, no Rio de Janeiro, e trata de alguns aspectos caros à dimensão processual do projeto.
Clarissa Diniz: Vamos começar pela invasão do superlativo na sua obra? Como é que o super surge? E como essa adjetivação louca que sustenta suas obras tensiona a linguagem científica que é emulada no projeto "Superficções"?
Guerreiro do Divino Amor: Olha, começou já no primeiro capítulo em Bruxelas e desabrochou no SuperRio... O Rio é muito superlativo, foi supernatural e inevitável. Por outro lado, o meu trabalho precisa desse prefixo para se distanciar da realidade e criar uma linguagem não tão pesada, para que não vire um puro panfleto político. O super já abre uma porta de percepção para um universo de ficção científica. Foi um instrumento de acesso a um publico maior, preocupação muito presente desde o começo do projeto. Curioso é que no começo do projeto de São Paulo eu não queria usar o super. Ia ser outra coisa, mas aí todo mundo falava assim. A linguagem deles tem muito mais “super” [risos].
CD: O superlativo como lente para olhar o Brasil. E como essa lente se articula ou se rearranja agora, nesse momento em que o projeto passa a pensar São Paulo?
GDA: O trabalho de São Paulo ainda não terminou. Tem um monte de camadas que não foram exploradas, outras temáticas que também não deu tempo de trabalhar. No Rio, a investigação foi baseada em conhecer grupos sociais diferentes, até porque minha mãe é de um determinado meio, e minha madrasta é do meio social oposto... Aí depois tive vários namorados em todos os cantos do Rio e da Baixada, então tinha já essa vivência da qual nasceu o trabalho. Em São Paulo, estou começando a ter essa vivência com pessoas mais próximas, intimamente, agora. Primeiro tive a experiência de me deparar com esse monstro e me perguntar “como é que isso foi acontecer?!” Como é que isso pôde crescer de tal forma e virar essa máquina única? Por isso o trabalho teve mais essa pesquisa nas origens, na história e explorou toda a simbologia de São Paulo. Foi se tornando uma pesquisa sobre os mecanismos de funcionamento da cidade, o que levou a falar desse espírito da conquista, dessa glorificação dos bandeirantes, do imaginário de empreendedorismo e essa coisa dura de trabalho, de imigração, de vencer na vida. Essa separação em caixas, e hierarquização das origens no Brasil. Cada um é colocado em seu lugar na história, com sua narrativa, e o que não está em nenhum lugar é apagado, enquanto outros são glorificados no imaginário coletivo, construindo uma máquina onde cada um é uma peça.
CF: Uma máquina social. E esse momento de São Paulo e a imagem construída pro outro, pra vender São Paulo, a privatização, o mercado imobiliário? E Doria? E Silvio Santos? Esses personagens, essa imagem bicéfala?
GDA: Cheguei lá bem quando Doria tinha acabado de tomar posse, então foi naquele boom e ele representava uma caricatura de todos esses temas que eu estava abordando. Silvio Santos também. Para mim Silvio Santos sempre foi São Paulo, essa figura persiste desde a minha infância, ensinando a ganhar e a ostentar. Essas duas figuras, de repente, estavam juntas naquela interação com a história do Teatro Oficina, formando um triângulo com Zé Celso Martinez Corrêa, o que me fez pensar neles com mais objetividade. Aí fechou a criatura bicéfala do filme. Eu fiquei brincando com as cabeças e vi que os rostos se encaixavam perfeitamente. Descobri, então, que são a mesma pessoa, e pronto. Não tem efeito nenhum, eu só cortei, joguei e parece que se sugaram e ficaram ali.
CD: Essa linguagem – tanto a visual, quanto esse tempo narrativo – é marcada por um encadeamento dos efeitos numa estética de colagem, de apropriação de signos e visualidades do cotidiano, como você acabou de narrar acerca do personagem bicéfalo, Doria + Silvio. No seu trabalho, essa poética da colagem é bastante ácida e saturada, carnavalesca. Fico interessada em saber da importância do carnaval, da rua, do bloco, da festa, pra constituição dessa linguagem...
GDA: Isso eu sempre tive, sempre foi a estética que me atraiu desde pequeno. A minha inspiração mais forte era a Xuxa. Desde cedo eu tive essa identificação muito forte com ela, com esse universo de luzes e cores, aspectos também de clipes de música. As cores fortes, que faziam vibrar, acabaram assim se encaixando no trabalho, naturalmente. O bloco de carnaval Bunytos de Corpo, com o qual colaboro, se prestava a isso também pelas cores do neon, do corpo, do sexo, do suor com o corpo vestido de lycra...
CD: E as ideias do Superimpério, Supergaláxia, Supervórtices, conceitos que você vai desenvolvendo ao longo do projeto? Que são super, super, super úteis para a gente entender a nossa realidade. Pode agora falar um pouco sobre esses conceitos?
GDA: O Superimpério e a Supergaláxia são civilizações em guerra. Quem ataca é especialmente o Superimpério: a civilização organizada dos superconsórcios, que tem imagem higiênica de cidade e de mente, uma coisa calculada, livre de todas as forças espontâneas. A outra civilização, a Supergaláxia, vive da ocupação espontânea da cidade, de uma vida talvez mais ancestral. São civilizações complexas, que se encontram em cada lugar do mundo. Os Supervórtices Espaciotemporais são buracos negros que sugam e conectam diversas partes geográficas ou épocas, colocando-as em sincronicidade. Por exemplo: Os grupos sociais vão se diferenciando tanto que acabam se aproximando mais de pessoas que estão do outro lado do mundo, em épocas remotas ou num futuro distante. Essas proximidades se desvencilham completamente do território físico e do tempo onde a pessoa se encontra são um tipo de supervórtices.
CD: Como é que você lida com os riscos da sua trama? Ainda que o trabalho seja bastante complexo, ao mesmo tempo ele também está cheio de binarismos, antagonismos imediatos como “Superimpério e Supergaláxia”, “o pobre e o rico”, “o trabalho e a exploração”... Na sua prática, como é que você se preocupa (ou não se preocupa) com as leituras que está produzindo sobre o mundo e sobre nossos corpos, posto que são arrojadas e ambiciosas, e muitas vezes totalizantes?
GDA: Morro de medo, claro! Assim, eu procuro pesquisar e pensar bastante (até por isso os trabalhos demoram tantos anos para ficarem prontos)... E aí tem a complexidade humana que vem quebrar esses binarismos; por exemplo, a superinveja do Superimpério da espontaneidade e da alma da Supergaláxia, que ele tenta sugar, e vice versa. São categorias abstratas e totalizantes, mas no fim das contas a maioria dos indivíduos se locomovem entre elas de forma fluida.
CD: E você conversa bastante com as pessoas ao longo do processo de criação?
GDA: É mais indireto. Não vou perguntar direto... Fico mais observando e absorvendo. É claro que o trabalho se vincula com os movimentos sociais atuais, principalmente o movimento negro e movimento das mulheres, que estão finalmente influenciando o debate uma escala maior, ocupando novos lugares.
CD: Acho que o seu caderno demonstra um pouco do seu processo de percepção, análise e criação, pois é possível ver como essa espécie de diagrama que sustenta a narrativa vai se construindo nos milhares de rabiscos e desenhos que vão se imantando entre si e ganhando corpo... A cada página aparece um novo elemento, e esse elemento é repensado, é rearranjado, se articula com outros, passa a integrar fluxos, muda de lugar dentro da cartografia... Por isso fico também curiosa em saber da relação entre seu pensamento gráfico (o desenho, o diagrama) e o escrito, uma vez que o texto que serve de roteiro para o filme é a coluna vertebral da obra.
GDA: É que o texto tem um começo e um final, né?! Já o diagrama tem essa leitura livre como a do painel, na qual você começa em qualquer canto e vai para outro canto sem uma ordem específica. Acho que é importante ter ambos. Se fossem só os painéis, o trabalho perderia porque faltaria dar nome aos bois porque, realmente, eles têm nome e isso é importante para nosso momento político.
CD: E o que mais você quer fazer? Como atlas man, o que você desejaria cartografar?
GDA: México, Colômbia, Suíça (minha terra natal). A China... E tem essa história de que você falou naquele dia, do Nordeste, com a qual tenho uma relação forte também...
CD: Você poderia fazer uma versão só de Arcoverde (PE), que você frequenta... SuperArcoverde!
GDA: Hilariante! Arcoverde tem muita coisa! E eu poderia incluir Buíque! [risos]
CD: É interessante fazer essa leitura supercomplexa de um lugar superpequeno, superinvisível. Até porque, no que tange ao Rio e a São Paulo, seu trabalho se apoia em figuras públicas, numa história macropolítica da cidade. Em Arcoverde, dada sua experiência por lá, talvez você pudesse cartografar a dimensão micropolítica da cidade...
GDA: E lá tem essas figuras, o padre, o cara da rádio, gente que tem superpoderes na cidade... Mas se eu fizer, vão me matar e eu nunca mais vou poder voltar pra lá! [risos]
CD: Só vai poder voltar mascarado, no carnaval!
GDA: Mas vão é ficar perguntando “quem foi que fez isso?!”
CD: Qualquer coisa, fala que não foi você, Antoine; diz que foi esse tal de Guerreiro do Divino Amor...