Salvador, 26 de abril de 2013.

Era julho.

Chovia, mas nos comportávamos como se estivesse sol.
Me via em um estado de expectativa para, afinal, ver tudo de perto. Na arte, se possibilidade houver, deve-se entrar em contato, compreende?
Um corpo a corpo efetivo.
Então, talvez, ocorra um encontro fortuito, articule-se um diálogo. Esse jogo, depende, entretanto, de uma série de fatores, nem sempre previsíveis, nem tampouco planejáveis.
Por isso era importante estar ali, depois de tantas conversas feitas a priori.
Aqueles oito trabalhos inéditos de Rafael RG pretendiam lidar com questões- chave ligadas aos conceitos da história: ficção, política e memória.
Sintetizar dessa forma, porém, seria simplificar uma equação bastante complexa. Afinal, como bem deveríamos saber, toda realidade é, na verdade, uma ficção.
“Até que provem o contrário”. Sentença que dá nome a essa exposição.
Subimos as escadas do Paço das Artes. Perguntei se estava contente com o resultado, me pareceu levemente distraído, não respondeu.
Eram fatos históricos específicos trazidos para o campo da arte. Transposição de documentos ditos oficiais, embaralhados a outros tantos, inventados pelo artista.
Repetiu algumas vezes em nossas conversas o interesse que tinha de pensar o artista como historiador/arqueólogo, ressignificando fatos históricos.
Embora compreenda essa afirmação, questiono, como ele transforma esse recorte em algo que possamos denominar arte.
Vejamos o procedimento: em meio a infinitos momentos possíveis, um fato ou situação histórica específica age como disparador.
Próxima etapa: pesquisa e, por último, a formalização que materializa o resultado. Ou ao contrário.
As etapas, evidentemente, agem simultaneamente numa relação interdependente.
É na pesquisa, porém, que, ao meu ver, esse vocabulário cria corpo.
Perguntei se ele concordava comigo. Me explicou que sim, que valoriza seu método e seu repertório jornalístico, que vai numa busca implacável pela informação, e que considera certas fontes em detrimento de outras.
Já eu, acredito muito numa força que arriscaria chamar de teimosia, o que ele chama de sorte. Me contou que visitou o arquivo do Estado quase que diariamente, numa persistência artístico-investigativa.
Não cabe aqui discorrer sobre essa máquina compilatória de informações organizadas denominada arquivo, lugar de memórias singulares, paralelas, subterrâneas.
Havia uma placa de acrílico remetendo àquelas colocadas do lado de fora dos stands de galerias em feiras de arte. “Stand” era uma estratégia sutil. Uma simulação.
Na parede branca, um cartaz impresso com a seguinte frase: “Exposição com IPI reduzido”.
Ontem, aqui em Salvador, entrei numa favela pela primeira vez. Não uma dessa pacificadas, nem turísticas, apesar da magnífica vista para o mar. Fui acompanhar o projeto de uma artista e quando me dei conta estava imersa nos caminhos tortuosos na companhia de um morador.
Fica com medo não, ele me disse. Não estou, eu disse.
Mentira.
Enquanto caminhava ladeira abaixo, pensava sobre este texto que precisava entregar. Pensava sobre o IPI reduzido, via nas casas os inúmeros aparelhos de tvs , os fogões e geladeiras, apesar da falta de saneamento básico.
Divagava ( provavelmente um exercício contra o estado de pavor) sobre a presença viva da força opressora na memória desses corpos , no efeito da miséria na subjetividade de um país, na fragmentação social gerada pelo sistema capitalista vigente, na consciência do outro, em como a arte, em eras pós- utópicas, deve funcionar como plataforma tátil de ação e conhecimento. Em como esse melindre ocasionado pelo sistema da arte pode ser fatal. Consciência social contra a beatitude dos modelos institucionais, contra a complacência a uma democracia corrupta. Gente fumando crack, cachorros, samba e pinga.
IPI reduzido, uma nova classe de brasileiros representando um novo país, rico e desenvolvido.
Verdade?
Ou mais uma maravilha construída pela mídia no processo de domesticação de uma sociedade massacrada pelo fetiche do consumo, através da esterilização do pensamento.
É disso que se trata.
O trabalho “PIB” é um gráfico de neon que representa a comparação entre o crescimento do PIB do Brasil com o do Reino Unido. Ironia em forma de luz colorida.
Em “Estados Alterados”, na expressão original da bandeira do Espírio Santo “Trabalha e confia” foi acrescido “e se arrepende”.
“Confisco” é composto por duas partes: uma peça sonora com o áudio original do discurso da ministra Zélia Cardoso de Melo ao anunciar o “Plano Collor”, e a exibição de notas de cruzados novos equivalentes ao valor do bloqueio, por 18 meses, dos recursos financeiros em conta corrente.
A medida causou enormes transtornos à população.
Encontro o sentido. São armas contra os apagamentos da memória.
São ferramentas para desmascarar as realidades cosméticas. São holofotes colocados nas brechas, nos vazamentos, nas fissuras, sempre tão mascaradas pelas máquinas de poder.
“Lembrança e esquecimento”, um crachá de uma Bienal futura, obra que também integra essa ficção.
O que Rafael RG traz nas suas absurdas anedotas são gotas de vacinas para produzir um certo grau de imunidade contra a sociedade de controle e de consumo.

São Paulo, 12 de maio de 2013.

Aproxima-se a data de entrega desse texto. A exposição, porém, acontece apenas em julho, possivelmente num dia de sol. Ou chuva.
Nesse dia, outras questões importantes irão surgir.
Mas isso é uma outra história.


Até que provem o contrário

Rafael RG

  • Até que provem o contrário, exposição do artista Rafael RG (foto: Raquel Diniz)
  • Até que provem o contrário, exposição do artista Rafael RG (foto: Raquel Diniz)
  • Até que provem o contrário, exposição do artista Rafael RG (foto: Raquel Diniz)
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Maria Monteiro

Maria Monteiro é gestora do espaço independente Phosphorus, estuda História, Crítica e Curadoria na PUC-SP, atua como curadora independente e produtora executiva especializada em exposições, além de colaborar com a Galeria Jaqueline Martins em Feiras de Arte Internacionais. Trabalhou como relações institucionais na Galeria Luciana Brito, foi curadora da primeira versão do Red Bull House of Art e organizou, ao lado de Franz Manata, o projeto Abotoados Pela Manga

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