“(...) As ruas da pequena São Paulo de 1900 enchiam-se de fios e de postes” (1). Trinta anos depois a cidadezinha transformava-se em metrópole. Hoje, megacidade, é palco do trabalho da fotógrafa Domitilia Coelho.
As luzes da cidade à noite fascinam Domitilia, que sai acompanhada de sua máquina fotográfica para registrá-las. Especialmente as que iluminam vitrines são o foco das suas lentes. Domitilia percorre ruas em seu veículo buscando as vitrines que serão fotografadas; estaciona para retratá-las mantendo-se dentro do automóvel, preservando assim o distanciamento daquele que está de passagem. Seu interesse reside no elemento luz que é utilizado para iluminar algo que se quer vender. E o que se quer vender? Tudo é vendável, do supérfluo ao necessário. A fotógrafa recorta desse universo os modelos de decorações de interiores expostos nas vitrines da via pública. Sua escolha nasce da necessidade de abordar questões como a padronização do gosto por meio de modelos que ditem comportamento: em que ambiente, com que determinado tipo de móveis e logística, é recomendável viver-se e quão fácil é fazê-lo...
Em se tratando de ambientes para o convívio da vida íntima, cabe citar em paralelo as imagens de residências de famosos veiculadas por revistas, especializadas em demonstrar o padrão social das elites, onde cria-se um ar de aconchego e prosperidade dado pela presença de seus habitantes nos espaços mostrados. Domitilia obtém o resultado inverso: suas imagens são tão frias e vazias quanto os apartamentos e casas pré-decorados, fabricados especialmente para o consumo.
Considerando que vitrine e luz são elementos indissociáveis, caixa de luz e imagem fotográfica também o são: é nas caixas de luz, ou backlights, que Domitilia proporciona ao espectador ver a imagem através do acrílico, numa circunstância similar a de ver vitrines através do vidro. A luz que atravessa a imagem e vaza ao seu redor deixa aparente o processo criativo da artista.
O trabalho de Domitilia abre um leque de possibilidades de discussão em torno da vida cotidiana do cidadão contemporâneo: para onde se dirige, o que faz imerso no vaivém do fluxo urbano, o que o atrai, que luzes o seduzem, quais são seus valores. “(...) ganha toda ênfase a importância da pergunta que o observador dirige à imagem em função de sua própria circunstância e interesse” (2) e o interesse da Domitilia espectadora começa nas luzes da cidade.
“E deixa só uma luz e outra luz e mais outra/ Na distância imprecisa e vagamente perturbadora/ Na distância subitamente impossível de percorrer” (3).
Notas:
(1) ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão. São Paulo: Globo, Coleção Obras Completas de Oswald de Andrade, 1990.
(2) XAVIER, Ismail. Cinema: Revelação e Engano. In: NOVAES, Adauto (org.). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
(3) GALHOZ, Maria Aliete (org.). Fernando Pessoa: Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965.