Pintura versus fotografia
Ricardo Ramalho
Desde sua invenção, a fotografia busca rivalizar com a pintura. A concorrência entre elas é natural, ambas tratam questões muito parecidas de bidimensionalidade, luz, cor, abstração e representação. Apesar da elaboração conceitual parecida, o processo plástico é muito diferente: a pintura possui unicidade e resistência física, exigindo boa dose de destreza do artista, atributos quase irrelevantes quando se pode desfrutar da reprodutibilidade e recursos tecnológicos, como no caso da fotografia.
A pintura depende basicamente de uma única pessoa, o artista, e alguns materiais simples, num processo direto, no qual as linhas e as cores são esculpidas lentamente, dentro do ateliê. A fotografia - nem sempre algo instantâneo, embora possa ser mais ágil como produto - requer uma logística mais complexa do que a pintura, exigindo certos controles externos cuidadosos: guarda segura dos negativos, equipamentos, numeração da tiragem, processos de revelação, ampliação, colagem, moldura e armazenagem, dependendo assim de uma gama de profissionais que vão além do ateliê.
Desde o final dos anos 90, em São Paulo, a fotografia tem vivido enorme popularidade entre curadores e colecionadores, chegando ao ponto de eclipsar a pintura, mas seu apogeu, como modalidade pura, é passado: a excessiva visibilidade reduziu o deslumbramento da técnica, e suas complexidades naturais parecem ter um custo alto para colecionadores conservadores, de modo que a fotografia agora desce do pedestal e encontra a boa e velha pintura, em pé de igualdade. Apesar de existir entre os artistas a tendência de manter uma distinção clara entre as técnicas, atualmente percebemos uma crescente mistura de soluções, onde a pintura recorre à fotografia, e vice-versa, incluindo o uso de terceiros recursos.
Alex Flemming, pintor assumido, amplia a noção de pintura e quebra o gelo da fotografia. Usando a plotagem em lona de PVC como suporte, distorce a noção de figura e fundo, numa espécie de arte gráfica. A imagem de fundo é a própria figura, e os elementos pintados criam um conteúdo paralelo, texturas, cores e gestos.
Eduardo Verderame produz uma espécie de pseudopintura com inserção de padrões de vinil adesivo, imitando material natural, como o mármore ou a madeira; valoriza o gesto artesanal e o desenho figurativo, e, ainda que adicione a eles técnicas industrializadas, mantém frequentemente um aspecto feito à mão, estratégia típica em seu trabalho.
Eduardo Srur, outro pintor clássico contemporâneo, produz pinturas a óleo, numa franca seleção de cores: paisagens desérticas, nuvens chapadas e contêineres que flutuam no céu, como se tivessem autonomia, e fardos desconhecidos, numa rota inexorável.
Daniel Lima faz fotografias que mostram uma realidade que somente o negativo de uma máquina pode captar, utilizando na composição o caráter científico deste meio. São imagens feitas com recurso de luzes de raio laser, em que este assume a função do pincel, ou grafite, preenchendo o campo e gravando a linha sobre um fundo, que pode ser um quarto ou o céu da cidade.
Luciana Costa, uma fotógrafa de verdade (artista, melhor dizendo), realiza um trabalho de representação de ícones do mundo contemporâneo, no caso flores de plástico, cuja textura do objeto se mistura com a textura da imagem, criando um efeito luminoso de cores chapadas, contornos secos e imprecisos, conferindo naturalidade a um objeto artificial.
Manoel Veiga, com suas pinturas aguadas abstratas, traz uma contribuição necessária ao cenário, incorporando, com leveza e transparência, uma certa dose de imprevisibilidade e risco calculado. O resultado tem uma fluidez contemplativa incomum, em cada peça, registros físicos dinâmicos, profundidades, rios.
Ricardo Ramalho
* Ricardo Ramalho foi curador selecionado para a Temporada de Projetos 2004
Realização: