“...e os lírios nas margens de rios remotos, frios e solenes, numa tarde eterna no fundo de continentes verdadeiros. Sem mais nada contudo verdadeiros.”
Fernando Pessoa “Não tenho outro modo de conhecer o corpo humano se não vivendo-o, isto é, assumindo por minha conta o drama que me atravessa e confundindo-me com ele.”
Merleau-Ponty
O terreno no qual Carlos Mélo atua não é preparado senão por seu olhar arguto e sua capacidade ritualística de se empossar do espaço. O embate entre o corpo e o mundo acontece nos refugos da rua, no espaço simbólico do museu, no território vivencial da praia, em qualquer lugar, para gerar não-lugares e sugerir uma possível e latente transcendência. O corpo como apêndice do mundo, complemento do espaço e acusador de ausências.
Aos poucos, o que este artista está constituindo é uma filosofia, e não apenas uma trajetória artística. Uma forma de atuar no mundo, de materializar essas imagens, situações e recortes do real que se apresentam, a ele, em estado de potência. Em “Terreno”, mostra apresentada no Paço das Artes, Carlos Mélo reúne um volume expressivo de suas investigações dialéticas acerca do universal, da racionalidade, do corpo vivido, do sagrado e do que está afetivamente no “entrelugar”.
Apesar de os trabalhos formarem quatro momentos distintos e independentes, algumas conexões entre estes instantes podem ser propostas, sem se perder o sabor de cada parada. Nova fornos é a maior sequência de dípticos sobre um tema já realizado pelo artista. A ausência de água – elemento imprescindível à vida – realidade tão comum em comunidades do sertão nordestino e de zonas secas de várias partes do mundo, é rebatida em situações de desapego sentimental, de aridez emocional, em que se espera a acolhida tecendo uma trama afetiva. O tensionamento entre o local e o universal, entre a terra e o transcendental, é constatado ainda no diagrama Mergulho no self sujo, uma sobreposição do texto sobre Narciso, em latim, às ramificações do rio Capibaribe, principal curso d’água do estado de Pernambuco. Sem o espelho d’água, como Narciso pode se contemplar?
Nova arte moderna pontua a retomada do vídeo, recurso muito utilizado no início do trajeto de Mélo, em que a câmera registra as vivencias do artista; neste caso, a sua interação com a máquina e o espaço após tomar um chá cerimonial. Ritualisticamente, Carlos Mélo vai buscando enformar seu corpo nas delimitações do enquadramento do vídeo. Posições, ângulos e tentativas não emergem não apenas por acaso, mesmo não havendo uma coreografia pré-estabelecida, mas pela consciência que o artista tem de sua corporeidade e pelo controle dos equipamentos, gerando sucessivas edições e reformulações durante o processo do vídeo.
Não obstante o receio de incluir a audiência em suas até então pós-performances, Mélo sugeriu, para o Paço, seu experimento Sim, toma, e outra vivencia do artista. Desta vez, o trabalho só faz sentido em espaços com grandes fluxos de pessoas, ainda mais quando se trata de uma situação tão carregada de simbolismo e de expectativas, como um vernissage o próprio artista. Negando e afirmando mais uma vez a realidade e cavando seu espaço afetivo, Carlos Mélo causa uma ansiada ausência presente.
* Carlos Mélo foi artista convidado para a Temporada de Projetos 2004