Marcos Hill
“Às vezes me fascina toda a gama de informações que vivem latentes em mim.”
Júlio Villani
Vivemos sob uma condição temporal inexorável que, às vezes, nos faz exagerar a dose de seriedade. A dimensão cíclica na qual nossos corpos e objetos estão inseridos estimula de modos distintos a própria consciência. Expansiva, esta consciência não cessa de inaugurar novos sentidos, alguns garantindo certo alento para a constatação nua e crua do concreto. E por que não brincar?
Regras e convenções têm sido aplicadas a contextos rigidamente formatados pelas sociedades. E o esforço de superação do provisório, tentando neutralizar este paradoxo, já construiu e destruiu vários impérios. Diante da efemeridade da existência, o humano pode reagir de modo inesperado.
Gosto de lembrar o dia em que o escriba, fazendo a contabilidade dos cavalos puros-sangues do faraó e das pedras preciosas azuis que seu soberano possuía, inventou um cavalo azul, materializando-o em seu desejo de alegria; imortalizando-o em escritos, que nutridos pela capacidade de maravilhamento diante do absurdo, transmitiram de geração em geração a possibilidade da poesia.
O trabalho artístico de Júlio Villani me estimula esse tipo de reflexão. Desde cedo, ao optar pela pintura como primeira expressão visual, seu investimento pessoal nessa técnica acabou por definir estratégias de relação com o mundo exterior, que ricas de inventividade e do prazer de brincar, abrangem importantes valores da vida do artista.
Afirmando que a pintura é mais o seu país do que a sua língua, Villani generosamente comunica por qual direção gosta de caminhar quando cria. A posterior descoberta de outras técnicas como o desenho, a aquarela, a gravura, a colagem, a fotografia e o vídeo serviu-lhe tanto para relativizar a rigidez de exigências tradicionais quanto para incorporar a ciência sobre o equilíbrio frágil que a pintura exige.
Inerentes à construção dessa linguagem, o intimismo, a solidão, a introspecção e a decantação exerceram sobre o artista influências pródigas. Daí ele retirou subsídios existenciais que até hoje norteiam suas “brincadeiras intelectuais”, na medida em que a circunspecção eminente de seu solitário processo criativo foi sendo transversalizada pelas influências afetivas da música popular brasileira da década de 1970, período em que Villani, ainda bem jovem, começou a investir na prática artística como possibilidade profissional.
Por pertencer à mesma geração que se localiza depois da pílula anticoncepcional e antes da AIDS, concordo plenamente com a afirmação do artista de que a música popular dessa época garantiu em muito nossa educação política, sexual e existencial. Foi sem dúvida a referência ética mais pregnante para toda uma geração que assimilou o lúdico como opção no redimensionamento metafórico de situações graves e muitas vezes urgentes.
Desse manancial poético, Villani aproveitou recursos que caracterizam sua produção visual. Como, por exemplo, trocar as funções das coisas, burlar inventivamente a ordem, jogar com as palavras e as imagens, propulsionando a ambiguidade inerente aos sentidos da comunicação humana. O modo como o artista trata a relatividade do real e dos limites fluidos desta realidade interessa muito para uma aproximação mais efetiva com a sua obra.
Resguardando a sensibilidade crítica que é um traço louvável do fazer artístico, o paulista nascido em Marília reafirma o humor e a ironia como opções interessantes de se expressar o mundo através de seus inesgotáveis resíduos imagéticos. Tendo a pintura como referência catalisadora do já vivido, este nômade por vocação transitou entre o Acre, Rondônia, Amazonas, Londres, São Paulo, Copenhague, Madri e Paris, no período de 1977 aos nossos dias.
Revendo alguns trabalhos da década de 1980, já se pode detectar inquietações que levaram o artista a desafiar as bordas rígidas da categorização dos fazeres. Em seu Museu de História Artificial, datado de 1981, aparecem séries de desenhos-colagens cuja motivação inicial partiu de pedaços aleatórios de madeira. Trabalhados pela natureza, estes fragmentos de arbustos ou de galhos foram relidos pela vocação fantasiosa do artista que os transformou em fragmentos de animais imaginários, percorrendo um tipo de classificação subjetiva que parodia o rigor das classificações arqueológicas, museológicas e científicas.
Atualmente radicado na capital francesa, Villani consegue passar de uma linguagem para a outra sem se sentir dilacerado. E reconhece que vive isto mais confortavelmente na medida em que, durante muitos anos, seu trabalho pictórico esteve mais relacionado com uma abstração geométrica nunca pura. Seu sabor concretista tem nas obras de Lygia Clark e de Volpi, na pintura popular brasileira e na pintura indígena a razão de diversos temperos.
Roberto Pontual gostava de associar essa geometria à quentura orgânica de Torres-Garcia. Suas “histórias de quadrados prontos para partir” possuem, segundo o crítico brasileiro, mais afinidades com os quadrados “miticamente transamericanos” do uruguaio do que com os de Lissitzky, “...aéreos (...) com o ímpeto e a leveza de uma utopia perseguida.”
Já o crítico francês Philippe Dagen utiliza com frequência o termo “minimalismo poético” para se referir à alma geométrica desse segmento da pintura de Villani. Nas obras de 1996, Alameda de Esculturas e Uma nota só, ambas na técnica da tinta acrílica sobre papel, a dinâmica construtiva na organização do campo visual sempre preserva uma relação residual com a realidade figurativa.
Vivendo em Londres de 1977 a 1980, o artista se aproximou da escultura inglesa, ampliando sua sensibilidade para o tridimensional. Na verdade, esta experiência que focalizou de modo privilegiado as obras de Barbara Hepworth e Louise Nevelson, serviu-lhe como etapa preparatória para a síntese que operou posteriormente entre os objetos do cotidiano, as palavras escritas e a própria pintura. Neste sentido, o contato pessoal com o artista Daniel Spoerri foi decisivo para a consolidação de uma linguagem híbrida que explicitou sua paixão latente pelas imagens da cultura de massa.
Na série das Vênus de Hong-Kong, de Havana e Antropofágica, todas igualmente de 1996, a paixão se expande pelo universo do brinquedo infantil. São fragmentos de bonecas de plástico, que deslocados para o contexto artístico, operam duplos sentidos bem humorados, políticos, econômicos, históricos e estéticos, contaminando ironicamente lugares do saber adulto.
Datada de 1997, a obra Ce que je fais c’est de la musique [O que faço é música] é exemplo emblemático do que vai se processando na poética visual de Villani. Recortando esta afirmação da fala de Hélio Oiticica, o artista incorpora lições neoconcretas preciosas. A importância da música brasileira no seu processo criativo é reiterada quando ele acrescenta: “...qualquer samba é bom para se falar de pintura (...) e qualquer lata dá cor...”
A partir de uma estruturação construtiva bem definida, campos de cor, letras e objetos (lápis, pincéis e tubos de tinta usados) solidarizam-se em um paralelismo que sugere ritmos musicais. Por outro lado, tanto o rigor cromático do preto no branco quanto o rigor compositivo são relativizados pela presença palpável de objetos verdadeiros colados sobre o campo pictórico e pela ambiguidade semiótica das palavras, gerando uma situação lúdica que dinamiza significados.
Em 1999, Magdeleine des Eyzies, uma fêmea de ganso, entrou na vida do artista, ou melhor dizendo, em sua arte. Convidado pelo Ministério da Cultura francês para participar de um programa de iniciação artística nas escolas (Residências da Arte na Dordonha), Villani desenvolveu projeto junto ao Liceu Agrícola de Périgueux, instituição formadora de técnicos para a indústria alimentícia. Considerando que atuaria junto a um sistema autárquico de sofisticados produtos franceses como o foie-gras, ele ativou seu costumeiro humor para misturar os limites das coisas.
Na realização de suas ideias, o artista contou com a participação de alunos e professores do Liceu, criando uma microempresa fictícia de alimentos requintados e introduzindo muita imaginação e ironia num contexto eminentemente técnico e comercial.
Com referências claras às estratégias dadaístas e duchampianas, os variados jogos de palavras produzidos ganharam consistência sígnica na recriação de cartografias, maquetes, estruturas empresariais, produtos e rótulos, reatualizando criticamente não apenas o universo específico da indústria alimentícia mas a memória de toda a região que, em torno do liceu, possui importantes sítios de arqueologia do período magdaleniano.
“Ressemantizando” o próprio sentido da vida e da morte, Villani salvou do sacrifício um filhote recém-nascido de fêmea de ganso, já que a indústria só aproveita machos para a fabricação do patê. Adotou-a, deu lhe o nome de Magdeleine e nomeou-a responsável pelo Domínio da Imaginação, verdadeira indústria da transformação que propõe produtos comestíveis que não podem ser comidos, conservas inconserváveis, pães com formatos de Vênus pré-históricas, etc.
Penso que com a adoção de Magdeleine, que vive até hoje com o artista em Paris, Villani deu um passo importante na direção do compromisso com a brincadeira séria, envolvendo seu próprio interesse pela arte, ligado ao que ele ingere ou respira diariamente, às suas “criancices” como ele mesmo afirma, e diluindo ao máximo a distinção entre arte e vida.
O mesmo acontece em produção mais recente agora mostrada na exposição remedos & remendos. O animal protagonista das ações desenvolvidas no vídeo Complexo de papagaio, de 2001, pertence igualmente ao artista e compartilha a convivência com Magdeleine, em Paris. Novamente a realidade implicada no próprio cotidiano de Villani é apropriada de modo magistral, criando um instigante estímulo para se refletir sobre os vários dispositivos que constituem o sistema da arte.
A destruição gradativa de reproduções da Mona Lisa, do Abaporu ou de uma foto de Picasso pelo bico do papagaio problematiza inúmeras categorias como as de tempo, imagem, reprodutibilidade, autoria, história da arte, memória, mídia, esquecimento, natureza e cultura. Entre o cômico e o aflitivo emergem pontos cegos que ativam pensamentos críticos.
Em Pesadelo de uma noite de verão ou Los Fontanas, de 2002, o pintor primordial retorna alegremente à discussão da pintura, se apropriando com liberdade de questões do plano e da cor anteriormente propostas pelo artista italiano Lucio Fontana. Encarados quase como pretextos para “brincar”, tais conceitos fundamentais são reafirmados como referências atualizadas do complexo campo pictórico, sem entretanto incorporar a costumeira sisudez intelectualizada.
Na verdade essa série tem sua origem em um pesadelo no qual Villani sonha estar visitando um museu com as obras de Fontana. Penalizado com os rasgos encontrados nas telas, ele se prontifica em costurá-las, sendo imediatamente detido por guardas que provocam o seu despertar. Também aqui é sugerido que o humor pode ser um recurso inteligente para se ampliar o pensamento crítico sobre assuntos importantes.
Igualmente incluída na atual mostra, Pintura de sombras explicita o recurso da reciclagem de objetos animados pelo espírito lúdico frequentemente presente. Duas caras sobre molas de batedores de claras movem-se com a passagem de um ventilador, produzindo, através de projeção luminosa, sombras em movimento sobre uma superfície de tecido. Buscando sempre ampliar o seu conceito pessoal de pintura, o artista propõe, desde o título, pequenas tensões entre a convencional fixidez da imagem pictórica e a natureza fugidia da sombra.
Nos convites de exposições assim como no material de propaganda de centros de arte e galerias que compõem uma outra série, a reciclagem tem como alvo as montanhas de material publicitário sobre eventos de arte que vivem entupindo as caixas de correio. Em pequenas sabotagens poéticas sobre a visibilidade de galerias e museus, Villani produz uma pintura extraída do material gráfico reaproveitado.
Considerando a repetição, a seriação e a diversidade de imagens que nos são impostas diariamente, o artista explora novas densidades entre o descartável do material impresso e a perenidade da pintura a óleo. Em sua opinião, os apelos multimídia de 1000 ofertas que marcam o contexto urbano pelo excesso e pela banalização devem fazer parte de suas investigações expressivas. Nesse sentido a imagem proliferada vira, ao mesmo tempo, suporte-e referência sensorial instigante.
Da realidade interiorana de Marília ao universo cosmopolita de Paris, se delineia uma trajetória motivada pela grande vontade de troca com o outro em lugares sem fronteira ou separação.
A generosa sensibilidade poética de Júlio Villani reflete uma memória afetiva de menino de fazenda que, inoculado pela Tropicália, assimilou o que interessava do Concretismo, redimensionando sua atávica paixão pela pintura. O resultado é um novo tipo de relação com as certezas conhecidas, o sistema de relações morfológicas aceitas, plásticas, seriais, genérico-conceituais, já não mais aplicáveis. E o que sobra na lembrança do observador que tem contato com essa obra é um "gostinho" mesclado de brincadeira, lucidez e arte.
* Júlio Villani foi artista convidado para a Temporada de Projetos 2002