Empreendimentos imobiliários, cartões de visitas, contas, embalagens berrantes, revistas semanais sempre iguais, guia do bairro, disk-pizza. O material gráfico que circula pela vida mediana é desolador. Sempre igual, sempre banal, anuncia-se que está proibido criar novas formas de subjetividade. Parte da produção de Michel Zózimo é lançar panfletos, livros, selos, cartazes, anúncios que libertam possibilidades reprimidas de experiência do mundo. Se eu souber que existe uma menina que quebrou uma taça de vidro e está enfrentando a angústia infantil da culpa, terei acesso a um extrato de mundo que quase não se vê, poderei explorar outra partilha do sensível (1) para além daquela que me é dada como única possibilidade. Daí a criação dos panfletos sobre o que Zózimo chama de “narrativas desinteressantes”, “banalidades do drama nacional”, “manuais para conquistar pequenos mundos” e “postais explorador”.
Os postais fazem parte da série Explorador, fotografias antigas que registram uma descoberta geográfica inédita: vales desconhecidos, cavernas, cachoeiras. Talvez o artista seja um explorador tentando achar novas partilhas do sensível, novas cavernas e vales do mundo fenomênico, que não vivenciamos por ficarmos sempre numa superfície ditada pelo material gráfico banalizador que vem nos dizer o que há para ser desfrutado: é muito pouco. A expansão das possibilidades de exploração do mundo é tarefa para quem vive uma existência estética, posto que estética é a relação com o sensível.
Notícias dessa jornada de investigação de outras formas de experiência do mundo são enviadas em cartões postais trocados entre artista e crítico de arte. Michel enviou-me a fotografia de um meteorito que o explorador encontrou em suas andanças, cientificamente registrado ao lado de uma cadeira, para haver noção de escala. O texto que acompanhava essa fotografia avisa que o explorador está em um lugar que é mais velho que o mundo. Prévio, portanto. Ele está lá onde a possibilidade de criação pulsa como potência, no vazio do que ainda não foi formado. Eu respondo com a fotografia de uma cratera, talvez causada pelo meteorito anterior. Sou crítica de arte, não artista, portanto tento ver as coisas da beirada, sem me jogar no vazio, resistindo a esse terreno perigoso e loucamente sedutor que é o nada, pois se eu desabar ali, não sei se, como o artista, saberei retornar.
É raro um artista que divide suas pesquisas com o crítico, que nos inclui na viagem como parceiro, co-piloto, auxiliar de navegação, que confia que atrás do texto analítico possa haver uma existência estética, um mergulhador, talvez não tão ousado e corajoso quanto o artista, mas certamente descolado do caldo ralo da produção de imagens superficiais do mundo.
Um se joga no vazio e olha de perto a possibilidade de descobrir. O outro aborda a questão com telescópios, sem arriscar ir pessoalmente para o espaço inexplorado, e anota em palavras o que enxerga à distância. Eu sigo não entendendo. Michel segue lendo livros.
(1) Jacques Rancière, A Partilha do Sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental.org; Editora 34, 2005.
Michel Zózimo
Paula Braga
Paula Braga é doutora em filosofia da arte pela FFLCH-USP e mestre em história da arte pela University of Illinois. Organizou o livro Fios Soltos: a arte de Hélio Oiticica (Perspectiva, 2008) e escreve sobre arte contemporânea para revistas como Ramona (Buenos Aires), Arte al Dia International (Miami) e Concinnitas (Rio de Janeiro). Atualmente é pós-doutoranda no Instituto de Artes da UNICAMP.
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