Cauê Alves
A poluição visual e sonora está tão incrustada em grandes cidades como São Paulo que é comum deixarmos de percebê-la. Estamos a tal ponto íntimo dos ruídos cotidianos que quase os ignoramos. Nossos sentidos são solicitados tantas vezes que acabam ficando um tanto intoxicados e anestesiados. Em casos extremos deixamos de escutar os sons mais delicados e com freqüência mais baixa. Por isso há quem sonhe com uma cidade silenciosa, e não à-toa recentemente a prefeitura de São Paulo tentou impor quixotescamente a Lei do Silêncio. O decreto proibia que feirantes, em meio a sons estridentes de carros e ônibus, gritassem para oferecer seus produtos, tradição que talvez remeta no mínimo às feiras medievais.Na contramão de qualquer autoritarismo ou ingenuidade em relação à realidade, Pedro Palhares Fernandes sabe tirar proveito dos ruídos e dessa “sujeira” sonora responsável pela comunicação. Artista visual, músico e cineasta, Palhares Fernandes estabelece um estreito e rico diálogo com alguns dos principais artistas experimentais do século XX. Certamente John Cage – músico norte-americano que desafiou no início dos anos 50 o público a ouvir seus próprios ruídos e os sons do ambiente, ampliando vertiginosamente o campo da música – está entre suas referências.
Quadraturas (série paisagem sonora) de Pedro Palhares Fernandes é um projeto que vem se desenvolvendo e ampliando desde 2004. Trata-se de uma espécie de rede que conecta as pessoas a partir do som. Feita com espessos canos de PVC, de tamanhos variáveis e suspensos por cabos de aço, essa rede transforma e amplifica os sons do ambiente em zumbidos contínuos, parecido com aqueles que ouvimos ao colocarmos uma concha no ouvido. Cada um desses sons equivale a uma nota musical. Nos encontros dos canos, há um banco para o público se sentar e concentrar-se no som. Ao se sobreporem mais do que duas notas, vindas de tubos de diferentes direções, formam-se acordes compostos tanto pelo artista, ao escolher o comprimento dos tubos, quanto pelo ambiente. Todos os pontos com assentos possuem sons distintos, assim Quadraturas possibilita experiências em grupo ou individual.
Outro trabalho apresentado por Palhares Fernandes é um corredor sonoro. Nele estão alinhados canos suspensos em uma seqüência determinada, que formam uma frase musical. Há canos no lado esquerdo e no direito, o que provoca uma interessante polifonia. O ritmo da música se dá de acordo com a velocidade com que o ouvinte atravessa o corredor. O resultado é uma composição aérea, uma frase musical constante que é tocada sem instrumentos tradicionais e que inverte a relação entre o público e o som. A música só pode ser escutada se o ouvinte se movimentar, independente da vontade do artista.
O conceito de paisagem sonora, elaborado em 1979 por Murray Schafer, ao menos indiretamente, está no horizonte de Palhares Fernandes. Para Shafer todo ambiente acústico, independente de sua natureza é uma paisagem sonora. Ao longo da história, essa paisagem vem se transformando e especialmente nos últimos tempos se tornou exageradamente barulhenta. Por isso o trabalho de Palhares Fernandes, instalado num lugar privilegiadamente silencioso, a Cidade Universitária, pode nos ajudar a reconhecer e ouvir a paisagem sonora como música.
Seus objetos sonoros se diferenciam do método de composição musical mais comum que organiza notas para construir a música. O que as obras de Palhares Fernandes fazem é se apropriar e modificar o som ambiente e cotidiano, nos fazendo perceber que o banal pode ser harmônico. Não se trata de mais um elogio ao ruído e aos sons mecânicos e eletrônicos de nossa época pós-revolução industrial, mas de uma maneira de reinventar os sons de nosso entorno. Em seu filme Dá-dos, (13 min., 16mm, 2003) ou na série de fotografias Memórias latentes, a chama experimental se manteve acesa, agora nas Quadraturas, mesmo que seja decretado o silêncio, iremos escutá-la.