Mesmo que venha provocando um interesse crescente no grande público, a arte contemporânea ainda é alvo de ironias pelos que dizem “não conseguir entendê-la”. Se raramente a pergunta sobre o significado de uma música é feita ao músico, no campo das artes visuais ela ainda é recorrente. Isso se deve também ao fato de que o olhar parece não dar mais conta de muitos trabalhos de arte. Uma vez que é possível fazer arte com tudo, inclusive com o que não é visual ou palpável, surge no público uma carência de explicação. Essa indesejável tarefa, de saída fadada ao fracasso, geralmente é delegada a educadores e críticos. Entre muitos outros fatores, os mal-entendidos em relação à arte se devem também a uma dificuldade de comunicação entre artista e público. Esse problema foi recorrente na arte moderna e não são poucos os artistas que em seu tempo foram incompreendidos, mas que a posteridade legitimou. Parte da arte contemporânea herdou algo dessa “incomunicabilidade” ao recusar uma relação direta com as massas ou com sentidos já cristalizados.

O trabalho de Maurício Ianês, mais do que lidar com esse legado, elege o “inefável” e o “inexprimível” como tema central. Não é por acaso que essas palavras aparecem escritas em néon sobre um grande cubo cinza, como rachaduras que se prolongam no chão. Mas seria possível expressar o inexprimível?

Uma pista pode ser vislumbrada em um autor - Ludwig Wittgenstein (1889-1951) - que o próprio artista cita no trabalho intitulado Tempestade. O filósofo vienense entrou para história com o seu Tractatus Logico-Philosophicus, onde escreveu: “Todo o sentido do livro pode ser resumido pelas seguintes palavras: o que é de todo exprimível, é exprimível claramente; e aquilo de que não se pode falar, guarda-se em silêncio.” Essas palavras foram alvo de controvérsias. Para os positivistas elas decretaram o fim da metafísica. Entretanto, para Wittgenstein, aquilo sobre o qual nada poderíamos falar é o que realmente importa na vida. O universo místico também é inexprimível. Assim, o essencial é tudo aquilo sobre o qual o pensador nenhuma linha escreveu, e para o qual a linguagem não daria conta.

Outra referência de Maurício Ianês aparece diretamente na videoinstalação Minha língua é a pena de um hábil escriba. Trata-se do poeta romeno radicado na França, Paul Celan (1920-1970), cujos pais foram assassinados em um campo de concentração. O artista apresenta imagens do Rio Sena, sob a ponte Mirabeau, em que o poeta se suicidou. Apesar de sua vida trágica, Celan é considerado o poeta que desmentiu a famosa declaração de Theodor Adorno (1903-1969) de que depois de Auschwitz não havia mais lugar para a poesia no mundo. Como um sobrevivente da catástrofe, a Shoah, o poeta conseguiu como poucos superar o silêncio avassalador diante do acontecido e a limitação das palavras para expressar o que não poderia ser dito.

Na verdade a limitação da linguagem só surge quando ela é concebida como ideal e pura, como se pudesse traduzir sem equívocos pensamentos e sentimentos. Essa seria uma linguagem apenas instrumental, uma linguagem supostamente perfeita e transparente. Mas a linguagem, principalmente a do poeta e do artista, não traduz significações, mas é habitada por elas. O sentido não está fora do mundo, uma vez que ele não pode ser anterior nem exterior à palavra. Maurício Ianês consegue exprimir o inexprimível porque sua linguagem é alusiva e indireta. O artista não copia nem traduz pensamentos, mas se deixa fazer e refazer por eles. É do indizível e do invisível que surge o dizível e o visível. É o silêncio que torna possível a expressão e a invenção de novos sentidos.
 
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ENTREVISTA COM MAURÍCIO IANÊS

Cauê Alves: Você acha que ao mesmo tempo em que se aproxima de uma vertente mais conceitual e com citações de obras de filosofia o seu trabalho acaba desconfiando das palavras como sendo capazes de exprimir completamente o que você gostaria? Qual o estatuto das palavras nesse trabalho feito para o Paço das Artes? Qual a relação delas com as imagens?

Maurício Ianês: Sim, na verdade todo o meu trabalho parte dessa desconfiança em relação não só às palavras, mas também em relação às imagens. É questionando o poder comunicativo das palavras e das imagens que surgem meus trabalhos e, sobretudo, pensando na função e na abrangência de palavras que se prestam a descrever justamente a incapacidade da linguagem de tocar em certos assuntos, se é que podemos chamar de assuntos essas potências de significado que flutuam à margem da linguagem e da representabilidade. Isso porque um "assunto", um pensamento mesmo, já vem atrelado desde o seu nascimento à linguagem, e assim a toda uma carga sócio-cultural específica. Dois dos trabalhos que serão mostrados no Paço fazem referência a pensadores que questionaram o uso da linguagem, de maneiras diferentes, mas ambos reconhecendo, em certo ponto, os limites estreitos desta para descrever o inefável, o inexprimível - palavras que também estão presentes na mostra, em dois outros trabalhos. Estes pensadores são o filósofo Ludwig Wittgenstein e o poeta Paul Celan, e em seus trabalhos - um de forma analítica, outro de forma poética - levaram a linguagem até os seus limites, até o seu quase aniquilamento, até o silêncio.

Cauê Alves: Você durante um bom tempo foi uma pessoa bastante religiosa, se converteu ao judaísmo e praticou a religião de modo bastante ortodoxo. Mesmo depois de você ter abandonado a prática sistemática do judaísmo, em alguns dos seus trabalhos você parecia um xamã, que de algum modo me remeteu a J. Beuys. Lembro-me que na performance que você fez na Bienal, “The Kindness of”, você parecia um líder religioso, uma espécie de pai-de-santo, e assim era tratado pelo público. Será que você poderia contar como foi esse processo e o que há de religioso em seu trabalho atualmente?

Maurício Ianês: É verdade que uma das questões que me levaram à prática do judaísmo ortodoxo, e que sempre me atraiu para a teologia judaica, é a sua relação com a palavra, o verbo, o livro, e a proibição da representação do divino em imagens, além da proibição da verbalização do nome de Deus (o que me leva a pensar no último aforismo do Tratactus Logico-Philosophicus de Wittgenstein, onde ele, depois de ter analisado a fundo a estrutura e os usos da linguagem na filosofia, declara que não se deve tentar falar sobre coisas que escapam à linguagem, já que o pensamento é sempre estruturado de acordo com os parâmetros e possibilidades da linguagem). Além disso, a religião judaica sempre teve o diálogo como base para a sua construção - vide o Talmud, o Zohar, etc, onde as decisões e leis eram sempre discutidas entre os sábios. Essas são questões que sempre me chamaram a atenção, e no decorrer dos meus estudos me vi envolvido de maneira mais profunda do que eu esperava. Hoje em dia, apesar de ter abandonado a prática ortodoxa, ainda carrego essas questões para o meu trabalho. No início da minha carreira, eu questionava a possibilidade de comunicação por meio da linguagem (artística, verbal, oral, escrita), colocando o artista como um comunicador falido e incompetente, preso às falácias da representação e de uma hermenêutica aberta demais para ser precisa nas suas intenções. Com o decorrer do tempo, comecei a pesquisar modos de testar o diálogo com o público de forma mais imediata, e nisso entrou a performance na minha pesquisa artística, onde eu, geralmente em silêncio, procurava - e procuro - estabelecer relações de comunicação que ultrapassem os limites da linguagem, indo além do horizonte da língua e do verbo, onde o verbo se torna ação de fato. Essa postura leva a relação artista/público para um lugar cinzento, onde o artista acaba virando mais um receptáculo para os desejos e anseios do público, eliminando a sua posição de criador e assumindo uma nova postura, mais sem forma. Isso pode criar no público uma visão do artista que beira a posição do xamã, devido não só às privações pelas quais acabo passando durante as performances (o silêncio, a ausência do "ego" do criador, a imobilidade, a disponibilidade incondicional para os desejos do público) que de certa forma se aproximam daquelas de monges, mas também porque me torno uma tela onde o público pode projetar os seus anseios, desejos e problemas de forma privilegiada e expandida. Isso, no entanto, não é algo que faça parte das questões centrais do meu trabalho. Na verdade, parto em geral de um pensamento bastante analítico - o que talvez aproxime o meu trabalho de uma vertente mais conceitual -, mas acabo sempre introduzindo um elemento mais emocional, mais físico, que ao mesmo tempo me distancia desta herança.

Cauê Alves: Pelo pouco que eu te conheço você é uma pessoa que vai fundo nas coisas. Jogasse de corpo inteiro nos seus trabalhos e nas opções que faz na vida. Tenho a impressão que você quer sempre atingir o limite, seja de seu corpo, seja no seu trabalho, na religião... De algum modo a morte é sempre o limite para a vida. No seu trabalho há referências, por exemplo, ao suicídio de Paul Celan. Como você vê a relação entre o limite da linguagem e da arte como expressão e o suicídio ou a morte como limite da vida?

Maurício Ianês: Traço uma relação inevitável entre os limites da representação da vida e os limites da própria vida. Nós vivemos através da linguagem, mesmo quando tentamos ultrapassá-la. No caso da minha relação com o trabalho de Paul Celan, isso acaba ficando mais evidente. Apesar de não estar particularmente interessado nessa questão da sua poesia, é impossível não lembrar que Celan anda às margens da linguagem por ter a necessidade de falar sobre o Holocausto, do qual ele foi sobrevivente. Isso o aproxima de escritores como Imre Kertész, que lutam para, por meio da linguagem, falar e dar conta de uma situação que não pode ser comunicada, que é indizível e impensável, pois reside além do entendimento humano comum. Penso em Celan lutando contra o silêncio proposto por Adorno (ao dizer que depois de Auschwitz a poesia se tornou impossível), mas ao mesmo tempo sem conseguir sair dele, terminando por ser chamado de poeta hermético. Penso o suicídio de Celan como um grande silêncio final, como se o inexprimível tomasse finalmente conta de sua pena

Minha língua é a pena de um ágil escriba

Maurício Ianês

  • Vista da exposição Minha língua é a pena de um ágil escriba (2009), de Maurício Ianês (Foto: Ali Karakas)
  • Vista da exposição Minha língua é a pena de um ágil escriba (2009), de Maurício Ianês (Foto: Ali Karakas)
  • Vista da exposição Minha língua é a pena de um ágil escriba (2009), de Maurício Ianês (Foto: Ali Karakas)
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Cauê Alves

Cauê Alves (São Paulo, Brasil, 1977) é professor do curso Arte: história, crítica e curadoria, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É curador do Clube de Gravura do Museu de Arte Moderna de São Paulo e realizou, entre outras curadorias, MAM[na]OCA: arte brasileira do acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo (2006), a mostra Quase líquido, Itaú Cultural (2008) e Da Estrutura ao Tempo: Hélio Oiticica, no Instituto de Arte Contemporânea (2009). Atualmente está preparando uma exposição monográfica sobre Mira Schendel (2010) e será curador do Panorama da Arte Brasileira do MAM (2011) e curador adjunto da 8ª Bienal do Mercosul (2011).

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