Entre bem organizados tubos, vidros, chassis, pinceis e diversos outros elementos do fazer pictórico, Paulo Almeida (São Paulo, 1977) vai construindo sua obra, sempre a discutir os sistemas e circuitos da arte contemporânea. Na maior parte do tempo, às vezes permanecendo quatro meses numa única série, fica em Lençóis Paulista, cidade próxima de Bauru, no interior paulista. Em alguns períodos, já utilizou o estúdio da galeria Leme, que o representa, para elaborar meticulosos quadros, às vezes em grandes dimensões.

Black market é o nome de sua nova série, apresentada na Temporada de Projetos do Paço das Artes, na primeira leva dos contemplados no edital para mostras no ano de 2012. A seguir, Almeida conta um pouco mais sobre o processo de produção de seus trabalhos e das bases conceituais da sua poética.

Você afirma com frequência que não é um pintor. Apesar disso, é inegável a sua habilidade na linguagem. Como foi sua evolução nela? E por que a pintura?

Sim, é verdade, eu já afirmei isso algumas vezes e pode parecer contraditório, sendo que grande parte da minha produção se dá em pintura. Quero dizer que a minha discussão vai além de questões pictóricas, a pintura é um meio de expressar meu trabalho e não a obra em si.

Mas é claro que não desconsidero a pintura como meio, sempre busco inovar no sentido de buscar diferentes formas de representação, agregando conceitos de outros meios, como a instalação, a fotografia, a escultura, a performance, indo além da pintura como um objeto estático. Tento criar uma relação mais dinâmica com o observador, como nas séries Palimpsestos e Olhe quem veio.

Comecei a pintar porque os outros meios não davam conta satisfatoriamente de questões que eu explorava na faculdade. A pintura foi o meio que me deu a dinâmica apropriada para atingir visualmente que eu tinha em mente.

Como você situa a série Black market em sua obra, logo após ter exibido a série Reflecting the collection?

A série Reflecting the collection, apresentada em 2011 dentro do Cultura Inglesa Festival, discutia a formação de acervos e suas implicações dentro de grandes museus – no caso, a Tate Gallery. A questão ainda girava em torno do universo da arte dentro de seu circuito oficial, como todo o resto da minha produção. O conceito dessa série é aparentemente simples, mas cheio de implicações, como representação e discussão. Fiz uma seleção de oito pinturas dentro do acervo da Tate, com grande nomes da arte inglesa e mundial, e pintei essas obras “espelhadas” em escala natural, usando o duplo sentido para palavra refletir, como imagem e ideia.

Na nova série, a discussão ainda girava entorno do objeto de arte e seu circuito oficial, mas o contexto não é mais ao que estamos costumado a lidar, o de museus, galeria e instituições. Em Black Market , lido com o mercado negro de obras de artes, o terceiro maior do mundo, ficando atrás apenas do de armas e drogas.

O que chamou minha atenção para esse assunto foi a frequência com que vem acontecendo e o fato de acontecer em todo mundo. Há também suas implicações no tráfico de drogas e de armas, com grupos extremistas que as usam como moeda de troca, no desfalque de instituições e do patrimônio histórico e cultural da humanidade.

Acho que, dentro do seu trabalho, há algumas mudanças com a eclosão da série Black market. Você utiliza o arquivo agora como base, o fundamento deixa de ser uma situação presente. Poderia comentar mais sobre isso?

Eu já utilizei arquivos fotográficos em outras ocasiões. Cito as obras Coletiva:/17.11.2004-1301.2007 (2007), na galeria Leme, e Das curadorias:/1987-2008 (2008), no Itaú Cultural. Em Black market, a referência vem de jornais, livros e internet, que trataram de roubos de obras de artes, além de pesquisas em sites como o do FBI e da Interpol, que mantém arquivos sobre o assunto.

Por uma série de fatores, Black market se difere das minhas outras séries, mas não apresenta uma mudança de caminho e sim outro caminho. Não penso na minha produção de maneira linear, mas com varias ramificações e possibilidades, agregando novos conceitos e diferentes formas de representação.

Enxergo algumas abordagens que podem ser consideradas políticas em sua obra. O fato de séries como Olhe quem veio (2009) terem sido em formato circular para, de certa forma, comentar o clima de insegurança, corroborado por instâncias das mais diversas, em SP, por meio do uso de um formato de tela que mimetiza os numerosos espelhos circulares de segurança onipresentes em condomínios e estabelecimentos variados na cidade. Já em Black market, escancarar elos tão intrincados entre os universos policial e artístico. Concorda?

Sim, você tem razão, acredito que toda minha obra tem viés político, mas, até então, ela mantinha uma certa ambiguidade. Ao mesmo tempo em que a obra criticava um sistema de arte, ela, de certa forma, o exaltava por colocar ele em evidência e também por fazer parte desse mesmo sistema. Nas duas séries que você comentou, a crítica é bem mais direta.

A baixa resolução, um dos signos mais fortes dos dias de hoje (a ver YouTube, câmeras em celular e captações amadoras colocadas na rede), o interessa? Pintar a partir de um registro que é quase um ‘caco’ de imagem? E, numa circulação maximizada de imagens do tipo, como reproduzir por meio da pintura registros desse âmbito?

Isso não era realmente uma questão para mim até o momento, mas é algo que tive de lidar na série Black market e é algo para se pensar. Algumas das imagens que tive como referência tinham baixíssima qualidade e isso fica claro no tratamento que tive de dar nas pinturas.

Quando se pinta a partir de fotografias, independentemente de sua qualidade, já existe um distanciamento da realidade. No caso de imagens digitais de baixa resolução, as cores e as imagens são muito alteradas. Isso fica claro nas pinturas dessa série, que apresentam diferentes tratamentos pictóricos.

Conte um pouco da sua entrada no meio das artes visuais. Realmente foi decisivo na sedimentação de sua poética o trabalho em um museu, entendendo de perto como funcionam as engrenagens de uma instituição?

Eu me formei em 2005 − e o fato de ter estudado na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado) foi determinante na minha formação de artista e na maneira como penso e produzo arte. O curso da FAAP nos apresenta a arte nas suas mais variadas formas, sem dar ênfase a nenhum meio específico. Minha pintura híbrida, com conceitos de outros meios, veio das aulas de fotografia, vídeo, performance, história, crítica de arte e tantas outras. Peguei o que me servia e apliquei na pintura. Outro aspecto importante foi o contato com alguns professores, artistas e teóricos, que tiveram influência muito positiva na minha formação.

Mais ou menos no meio do curso, eu fui fazer estágio no MAB [Museu de Arte Brasileira, vinculado à FAAP], e, logo que entrei, a primeira coisa que eu pedi foi para conhecer foi a reserva técnica, por pura curiosidade. Mas, o momento em que vi aquele monte de obras organizadas como produtos em um supermercado, foi algo meio chocante. Até então, eu tinha uma visão mais romântica sobre a arte, pairava na minha mente o universo do ateliê, o ato de criação e desenvolvimento da arte, nunca havia pensado em seu destino e em seu sistema que define quem será visto e quem permanecerá guardado, catalogado e nunca visto. A partir daí, comecei a condensar uma série de questões que já tinha em mente.

A cartografia foi importante na criação dos trabalhos que apresentou no CCSP (Centro Cultural São Paulo), em 2008. Isso tem a ver com um registro também de arquivo, só que com uma linguagem diferente da que utilizou em Black Market, não?

Sim, mas no caso do trabalho apresentado no CCSP, o que sofreu alteração foi a forma de representação. Ao invés de fazer uma perspectiva frontal, eu optei por fazer uma vista aérea para dar conta de todo o espaço expositivo, o que não seria possível a partir de um único ponto de vista.

A arquitetura também é forte elemento para a realização de suas séries, como na exposição que fez em conjunto com David Batchelor, também em 2008, e com o novo conjunto de peças que exporá na Leme em julho. Poderia falar a respeito?

A arquitetura é muito importante na minha obra, ela representa o próprio circuito de arte, responsável pela exibição e valorização do objeto de arte. Somente nas séries Reflecting the collection e Black market ela não está diretamente presente.

Em julho, apresento na galeria Leme uma nova série, Reflecting the museums. Nela, é explorada a imponente arquitetura dos grandes museus do mundo, como o MoMA e a Tate, e sua relação com o público na apreciação e na exibição do objeto de arte. Em Reflecting the museums, é a primeira vez que incluo a representação da figura humana nas minhas pinturas de ambientes.

Caso você se enxergue mais ligado à arte conceitual, quais artistas cujas obras o instigam mais? E também há pintores influentes em seu percurso? Gerhard Richter, Luc Tuymans, Nicolas de Staël...

Não me vejo diretamente ligado a nenhuma corrente artística, mas a arte conceitual é minha grande referência, apesar da pintura ter sido duramente combatida por artistas conceituais. Eu faço uso dela para aliar a linguagem altamente crítica e conceitual dessa vertente, quase ausente do objeto em si, com o caráter sensorial da pintura, especialmente a de grande formato, aproximando-a conceitualmente e fisicamente do observador. Talvez por isso eu não me considere um pintor, considero o conceito muito mais importante que a pintura em si, como manufatura.

A lista de artistas que me instiga costuma mudar de tempos em tempos e inclui alguns pintores. Há artistas que já tem seu lugar garantido, como Velázquez, Joseph Kosuth, Gordon Matta-Clark, Kurt Schwitters, Art&Language, Gerhard Richter, Antony Gormley, Mark Wellinger, Cildo Meireles, Gabriel Orozco, Louise Lawler, dentre outros. Também gosto muito da obra de Olafur Eliasson, Ai Weiwei, Bharti Kher, Sam Taylor-Wood, Roger Hiorns e vários que não me recordo agora.

Você faz muitas residências. O que elas acrescentam em sua trajetória? O que elas eventualmente prejudicam?

Meu trabalho depende de uma visão crítica do circuito de arte. E essa visão costuma ser moldada pelo contexto em que vivemos. A residência artística amplia, e muito, tal olhar, ao me inserir em um ambiente de arte totalmente distinto, com diferentes artistas, espaços expositivos, curadores etc. São criadas outras dinâmicas que me permitem ver as coisas por outros pontos de vista, pensar a respeito de questões que nunca passariam pela minha cabeça se eu estivesse sempre vivendo e produzindo em São Paulo. Da maneira que tenho administrado essas residências, elas não me prejudicaram em nada. Geralmente por serem muito longas, elas nos fazem abrir mão de certos projetos, mas, no meu caso, elas sempre se deram em um período que eu estava livre.

Entre telas e redes

Paulo Almeida

  • 31.08.2009 (2011)
    óleo sobre lona
  • 05.05.2009 (2011)
    óleo sobre tela
  • 24.08.1911 (2011)
    óleo sobre tela
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Mario Gioia

Mario Gioia é graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo). Foi o curador, em 2011, de Presenças (Zipper Galeria), inaugurando o projeto Zip Up, destinado a novos artistas (que teve como outras mostras Já Vou, de Alessandra Duarte, Aéreos, de Fabio Flaks, e Perto Longe, de Aline van Langendonck, com a mesma curadoria). Em 2010, fez Incompletudes (Galeria Virgilio), Mediações (Galeria Motor) e Espacialidades (Galeria Central), além de ter realizado acompanhamento crítico de Ateliê Fidalga no Paço das Artes. Em 2009, fez as curadorias de Obra Menor (Ateliê 397) e Lugar Sim e Não (galeria Eduardo Fernandes). Foi repórter e redator de artes e arquitetura no caderno Ilustrada, no jornal Folha de S.Paulo, de 2005 a 2009, e atualmente colabora para diversos veículos, como as revistas Bravo e Trópico e o portal UOL, além da revista espanhola Dardo. É coautor de Roberto Mícoli (Bei Editora) e faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes.

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