A linha de demarcação no centro do quadro indica uma dimensão ambivalente de mundo.
Entre a chuva e o boneco de neve é o palco de dois acontecimentos em campos espelhados, que não se deixam abalar um pelo outro. Uma dupla ação se inicia. No campo esquerdo, uma bola desenha uma órbita incorruptível: é projetada sobre a parede, bate no chão e sai de quadro, para então voltar a ser projetada sobre a parede, pingar no chão e sair fora de quadro. Simultaneamente, à direita da tela, chovem bolas de papel amassado em intensidade crescente. Ao tocar o chão, as bolas rolam e congelam como pedras.
Há um sistema sugerido, que rege e organiza as ações em campo. Mas, como todo sistema, este também tem falhas. É justamente através da brecha que Sara Ramo entra no campo de sua criação para interferir no próprio sistema, procurando alterá-Io, removendo pacientemente as pedras que se acumulam no chão para tentar garantir a formação de um boneco de neve. Presente fisicamente no vídeo, a artista se situa na iminência dos dois estados propostos: o chover (desmanchar) e o manter-se de pé (ser construtivo). Sara se esforça, mas sua vontade modificadora, porém, não parece vingar. A chuva permanece, as pedras rolam e a artista sai de cena. O jogo vira e as pedras evaporam no ar.
O vídeo se comporta como fábula. Sem regras evidentes, tem funcionamento similar à de uma breve narrativa alegórica. Entre a chuva e o boneco de neve pode ser lido como um campo de batalha, onde contracenam e disputam entre si as qualidades humanas da vontade e do vício. Entre essas duas personagens, Sara Ramo parece ficar com a última. Seus trabalhos costumam recair sobre as órbitas, hipérboles, voltas e revoltas. Um tipo de movimentação não exatamente monótona, mas viciada. Mas o partido do vício é assumido apenas para poder corrompê-Io. Ao alterar ligeiramente seu eixo e sua circularidade, a artista modifica profundamente a realidade.
Narrativa fantástica, elaborada para explicar situações da vida prática, a fábula borra a linha demarcatória entre ficção e realidade. E, como o vídeo é fabulação, sua operação é aproximar arte e vida. A briga da artista contra a natureza inexorável da chuva e do tempo é uma alegoria do seu fazer artístico cotidiano: do trabalho do dia-a-dia. Essa dimensão "real" das fabulações de Sara Ramo aparece na fotografia Invasão ou tudo que ficou contido, onde o ateliê da artista é ocupado por bolas de papel em estado de suspensão. "Projetos e ideias por fazer, pensamentos que se materializam", define ela.
Chover, empedrar, em bolar, evaporar, chover, empedrar, embolar, evaporar. O ciclo parece reafirmar o que Joseph Beuys previa para a arte: pensar é esculpir.