Guy Amado
Uma faixa de substância indefinida avança no espaço expositivo, quase mimetizada no ambiente branco da sala e apenas percebida pela nuance tonal que a destaca da parede-suporte. Contamina todo o ambiente - tanto matéria inerte como o próprio espectador, que, à medida que adentra essa área, se dá conta de sua súbita condição não mais de observador passivo, mas de agente - voluntário ou não -, da experiência que Carlos Pires aqui propõe. Esta mancha-substância (anti-matéria?) perpassa todo o ambiente, envolvendo material e virtualmente os corpos - objetos e público - ali presentes, estabelecendo um campo de quieta tensão onde transcorre um jogo, repleto de nuances peculiares. Um jogo-situação, cabe dizer, em que não há espaço para o elemento lúdico, e no qual a ambiguidade aparenta ser a tônica (visível-invisível, contido-continente, positivo-negativo, pIano-superfície); um jogo silencioso à espera de ser jogado.
Ao propor essa situação, Carlos estabelece também uma reflexão acerca do processo da percepção em si, em que algumas convicções e pressupostos instituídos pela fenomenologia são abalados. Ao espectador que realiza sua fugaz condição neste tabuleiro não são fornecidas 'respostas'; ao contrário, só se faz aumentar as incertezas quanto à real natureza e lugar das coisas - e de si próprio - no espaço e no mundo.
A ironia e humor refinados, elementos recorrentes na poética e no processo conceitual de Carlos - graduado em Linguística - emergem agora de maneira mais sutil; a preferência aqui foi por privilegiar a introspecção, acentuada pela quietude fria e quase melancólica que emana desta ocupação. Uma espécie de 'zona negativa', em que os limites são estabelecidos pela percepção do espectador. Aqui não se busca nem há espaço para qualquer inferência de caráter lúdico ou para o 'estilo'; nesse mundo sem sombras a única saída é a imersão na experiência.