Daniela Maura Ribeiro
O artista Silvio Tavares fez uma passagem marcante pela arte. Silvio começou em 1998 - quando deixou de atuar no campo da psicanálise (obteve o título de mestre em Teoria Psicanalítica, nesse mesmo ano, pela UFRJ) -, a partir de indagações que surgiram ao ver uma exposição do consagrado artista Nelson Leirner no XVI S-alão Nacional de Artes Plásticas, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ). E terminou em dezembro de 2004, quando faleceu, precocemente, aos 34 anos.O legado que ele deixou denuncia suas inquietações a respeito da arte, do Circuito artístico e da questão da identidade, a qual, a meu ver, engloba todas as outras.
A questão da identidade é esmiuçada e discutida por meio de retratos e auto-retratos de Silvio (realizados entre 2003 e 2004) que compõem a instalação Maria Brígida Fernandes, fruto de sua pesquisa de mestrado em Linguagens Visuais na UFRJ. Na instalação, os retratos estão acompanhados de cartas, supostamente escritas pela mãe do artista (Sra. Maria Brígida), dona de casa. Nas cartas, Silvio assume a identidade de sua mãe (que se torna uma artista) e apresenta as próprias obras aos mais significativos salões de arte brasileiros, com a intenção de exibi-Ias. Tanto as propostas aceitas quanto as recusadas pelos salões estão presentes na instalação.
O primeiro entrave identitário começa quando tentamos descobrir de quem realmente se trata: do filho ou da mãe? Essa premissa abre o debate que o artista promoverá em torno do tema, citando ideologicamente o conceito histórico de cross-dressing - que remonta ao Renascimento e terá manifestações fundamentais na História da Arte, como em Duchamp (Rrose Sélavy). Segundo a historiadora Annateresa Fabris, no livro Identidades virtuais - uma leitura do retrato fotográfico, esse conceito "coloca em discussão as categorias 'masculino' e 'feminino', em termos ontológicos, biológicos e culturais".
O outro questionamento, não menos importante, relacionado à identidade está explícito nos núcleos dos trabalhos selecionados para o "16° Salão Nacional de Artes de Praia Grande" e nos recusados no "36° Salão de Arte
Contemporânea de Piracicaba".
Evocando a tradição do retrato pictórico - de meados do século XIX, quando, por exemplo, o pintor Ingres passa a pintar retratos de sua clientela, pautados em fotografias realizadas por Nadar -, "sua mãe" pede a um retratista popular que pinte o retrato de seu filho a partir de uma fotografia. Mas com um detalhe: que faça uma fusão dela com a imagem de ícones de diversas áreas.
Para o Salão de Praia Grande, "a mãe" propôs expor três retratos (ou
auto-retratos?) de Silvio, nos quais sua imagem se 'mistura" à de Jesus
Cristo, à do cantor Roberto Carlos e à do marido falecido, alegando que:
"meu filho gostou muito de seus retratos misturados com meus ídolos e
falou que eles precisavam ser mostrados", como" escreve" na carta que acompanha os trabalhos.
No Salão de Piracicaba, o retrato fotográfico de Silvio se funde aos pictóricos de ícones da História da Arte de vários períodos, como Albrecht Dürer (Renascimento), Diego Velásquez (Barroco) e Euqene Delacroix (Romantismo), porque, segundo a justificativa da "mãe", esses artistas eram "muito parecidos com meu filho". Seria apenas uma semelhança física?
Em todos esses retratos torna-se muito forte a hipótese de uma identidade que se incorpora e se confunde com diversos papéis ou personagens para discutir o próprio eu e a questão da origem: o artista incorpora a figura da mãe, para apresentar os trabalhos, e se funde à do pai, no retrato.
"(...) Eu não dei por esta mudança
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida minha face?"
(Trecho do poema "Retrato" de Cecília Meireles. In: Flor de Poemas. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 16ª impressão. Coleção Poiesis).