“Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se
sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir – é lembrar hoje o
que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida
perdida.
Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova
madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção – isto, e só isto, vale
a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos.
Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor rosa amarelecendo
para branco quente pousou assim na face com que a casaria de oeste
encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente.
Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for
será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos,
cheios de uma nova visão.
Altos montes da cidade! Grandes arquiteturas que as encostas íngremes
seguram e engrandecem, resvalamentos de edifícios diversamente
amontoados, que a luz tece de sombras e queimações – sois hoje, sois
eu, porque vos vejo, sois o que serei amanhã, e amo-vos da amurada
como um navio que passa por outro navio e há saudades desconhecidas na
passagem.”
Livro do Desassossego, Fernando Pessoa
O projeto do artista Giorgio Ronna para esta edição da Temporada de Projetos consiste no vídeo Contratempo e na série de fotografias Lifesound II. Em Contratempo assistimos à lenta alternância entre alvorada e anoitecer em paisagens urbanas anônimas – sabe-se que foram filmadas no Brasil, mas não há pista alguma que as identifique como tal. As noções de passagem do tempo e sua suposta linearidade são colocadas em xeque se possuirmos uma informação-chave: a aurora que vemos é um anoitecer editado de trás para a frente.
A câmera observa de longe as ruas, casas e apartamentos. O distanciamento faz da metrópole um ser aparentemente imóvel. Contudo, um olhar mais atento revela aos poucos sutis alterações: microscópicos deslocamentos de homens e carros, lâmpadas que se acendem, o brilho frenético dos televisores, uma persiana que se fecha. Para Ronna, estas luzes mimetizam o movimento daqueles que habitam a cidade, são sempre indício de uma ação humana que irrompe no território urbano. “Uma coreografia de luzes interiores”, nas palavras do artista. Estabelece-se assim um íntimo diálogo entre dois mundos distintos, mas que compartilham o mesmo espaço: a luz artificial (elétrica) e a luz natural.
A relação homem/natureza também é discutida nas fotografias de Lifesound II (série que inclui ainda um vídeo digital e super-8). Estamos em um bosque fechado, pouco iluminado, muitas folhas pelo chão (a locação fica no topo de uma montanha em Zurique, cidade onde o artista está radicado). Faz frio, como revelam as roupas da personagem feminina que por ali passeia. Como um recém-nascido, descobre naquele momento um novo mundo, observando de perto as árvores, tateando no ar, abaixando-se cuidadosamente para tocar a relva. Ela interage livremente com os ruídos do bosque, os “sons do inverno”.
Nestas fotografias cada imagem é duplicada, num procedimento que sugere um espaço extra-quadro, uma multiplicação em cascata, caleidoscópica, que tende ao infinito. Este espelhamento cria uma zona de intersecção, momento em que a simetria dá lugar à “aparição” de uma configuração, inesperada e única, no interior da cena. Não por acaso, a atenção da personagem está sempre voltada para este ponto híbrido.
Dentre as possíveis associações da obra de Giorgio Ronna com a linguagem cinematográfica, estabelecer paralelos com o universo de Andrei Tarkovski é um exercício particularmente interessante. O cineasta russo atravessa, com sua poderosa iconografia, questões ligadas ao tempo, memória, identidade e alteridade, a cultura do homem e sua conflituosa relação com a natureza. Em O espelho, filme com o qual a obra de Ronna conversa de perto, nota-se a mesma luz temperada que emerge da relva, como um vapor, de encontro a um espaço aeroso, que funde seres, coisas e objetos, subtraindo-lhes a matéria e diminuindo nossas certezas tanto sobre homem quanto sobre natureza. Em meio a este universo movediço, o “outro” surge a todo momento, em reflexos, nas janelas e espelhos. Quem assiste ao filme descobre que o espelho de Tarkovski não nos devolve uma cópia do real, mas uma imagem transfigurada, contaminada brutalmente pela distância e pela memória. As questões que aí se colocam podem ser compartilhadas com Lifesound II: deveria o outro, nosso duplo, causar-nos estranhamento? Seriam estas imagens do bosque em Zurique de fato iguais? Se, diante de um espelho, não reconhecemos nem a nós mesmos, porque nos convenceríamos de que estamos vendo agora duas imagens idênticas?
Logo no início de O espelho, desponta na paisagem o personagem do médico viajante, que se aproxima da bela mulher [a figura da mãe], senta-se ao seu lado sobre a cerca de madeira, que cede sob o seu peso, atirando-o ao chão. Ele se deixa estar ali por alguns segundos, observando a vegetação, até que se dirige à mulher: “Caí, e o que vejo... raízes, arbustos... Nunca lhe pareceu que as plantas também sentem, pensam, raciocinam até?”. E prossegue, numa pergunta que se formula como um epitáfio: “Porque nunca acreditamos na natureza que está diante de nós?”.