Abaixo, a entrevista concedida pelo artista Daniel Jablonski à crítica Nathalia Lavigne.
Nathalia Lavigne: Queria começar perguntando sobre a ideia de narrativa, um aspecto forte no seu trabalho. Como é, neste projeto, partir do cinema, um meio em que ela existe por natureza, para desmembrar a trama e estrutura dos filmes completamente?
Daniel Jablonski: Estava interessado em fazer uma contraleitura desses filmes. Porque há claramente ali a narrativa de ficção, mas é também possível encontrar por baixo algo da ordem do documento. E é justamente onde o clichê habita. Essas centenas de referências ao Brasil não são importantes para as tramas, mas ainda assim estão ali, quase como puros fatos. Mostrar o tanto que há de não-ficção nesses filmes é também apontar para a natureza do que é um clichê: uma imagem que um dia foi original, mas que foi gasta pela repetição.
Uma das maneiras que encontrei de fazer essa contraleitura foi pela desarticulação da narrativa. No cinema de ficção, tudo é pensado em termos de trama, mas essa totalidade narrativa esconde suas camadas, a verdade daquilo que é artificioso. Ao desmontá-la é possível analisar cada parte em detalhe: still, áudio, cancioneiro, ficha técnica e imagem em movimento. É o que acontece na exposição: assim decomposta, ela propõe ao público que pense e veja aqueles filmes para além ou para aquém da narrativa dominante.
NL: Por que o filme "Brazil" (1985), do Terry Gilliam, foi importante nesse trabalho?
DJ: Esse filme é paradigmático para o projeto. Primeiro porque me deu o modelo do que estava procurando: não é sobre o Brasil, não há nada que se possa associar diretamente com o país, mas se chama Brazil. Ele introduz a questão mais geral: por que o país é uma obsessão referencial no imaginário estrangeiro, mas sempre uma referência lateral? Há também ali uma pista central: a música de Ary Barroso, Aquarela do Brasil, que aparece na sua versão norte-americana [traduzida como Brazil]. Ao contrário da letra original, que é um samba exaltação – “Brasil, Meu Brasil, Brasileiro” – esta consiste na transposição do ponto de vista do eu lírico. Já não é mais o brasileiro louvando seu próprio país, mas o estrangeiro que vê o Brasil como um lugar utópico, edênico, onde alguma coisa maravilhosa já aconteceu, e ao qual ele quer, mas não consegue voltar.
O Brasil aparece, nessa música, como o lugar da fuga, um avesso da realidade, no qual se projetam todos aqueles desejos que não podem se cumprir. A cena final do filme, notadamente, funciona como uma síntese perfeita dessa ideia: o protagonista está sob um domo que é “lugar nenhum”, amarrado a uma cadeira, fugindo dali em um estado de alucinação, ao som de Aquarela. Nesse exato instante, a legenda mostra a letra da música da música cantada em inglês: "Return I will / “To old Brazil".
NL: Como foi a metodologia usada nesse trabalho e de que maneira sua experiência prévia como pesquisador aparece em seus projetos?
DJ: A pesquisa nasceu a partir de uma anedota pessoal: ao assistir filmes antes de dormir notei a repetição da menção ao Brasil em títulos aleatórios. Em seguida entrou o meu background de pesquisador: comecei a buscar um método que me ajudasse a reunir um número razoável de dados. Foi então que descobri um buscador maravilhoso na internet chamado QuoDB | The movie quotes database, que cruza roteiros de filmes. A partir de uma busca inicial cheguei a um resultado na casa dos milhares e fui eliminando: se tinha alguma relação com o país, se tinha ator ou produtor brasileiro, etc. Dentro do conjunto que restou de quase 900 filmes, fui tirando o que queria – exatamente as cenas em que aparece o documento, o clichê em seu estado bruto. No fundo, toda a exposição consiste nessa operação de congelar algo. Isso significa extrair a narrativa, os personagens, a música, guardar só o momento em que aquele dado aparece.
NL: Como foi sua transição de pesquisador, na área da filosofia, para artista visual e o que te fez ir para essa outra atuação?
DJ: O que me incomodava no mundo a acadêmico não era nem a motivação, nem o método, mas unicamente o produto. Em geral, artigos e teses são formatados de um jeito que os tornam acessíveis apenas à meia dúzia de pessoas, que são seus colegas na universidade, também pesquisadores. E o que você faz em um artigo, normalmente: apresenta um problema, explica o seu método e tira as conclusões. É uma espécie de ciclo completo. O que tento, como artista visual, é usar esses métodos e aplicá-los a problemas da vida cotidiana. Isso acaba por aproximar o público, que pode se identificar com qualquer um desse temas: hoje, por exemplo, todo mundo assiste filmes em casa. Mas talvez a maior diferença em relação a um trabalho acadêmico esteja no fato de não tirar as conclusões.
O que tem de bonito em uma obra é que cabe ao público fazer isso. Esse trabalho aposta em um método exaustivo que não descrimina o seu material, mas o apresenta da forma mais aberta possível. Claro, o público de artes visuais também é específico, mas ainda é mais aberto do que na academia.
NL: Como foi o processo do livro O Boletim da Juventude (2014), que é seu primeiro trabalho como artista ou quando você define a intenção?
DJ: Não é meu primeiro trabalho, mas um trabalho sobre o início. De quando eu era estudante e, já insatisfeito naquele meio, comecei a me perguntar como seria concretizar a ideia de fazer arte. Como se faz arte? É preciso ser artista. Mas como se é artista? Tem que fazer arte. É um circuito fechado, principalmente para quem vem de outra área. Então a conclusão a qual cheguei é que para furar o circuito é preciso inventar mesmo. E O Boletim da Juventude, resultado de uma conversa entre amigos durante uma madrugada em 2009, é um pouco essa tentativa de construir algo que viria a existir porque aquele livro permitiria. Ele cria um background de elementos reais ao mesmo tempo em que explicita a vontade de querer mudar de rumo.
Nessa época estava estudando os artistas conceituais americanos – Joseph Kosuth, Douglas Huebler, Lawrence Weiner. Uma das maneiras que eles fizeram para o seu trabalho circular, no fim dos anos 1960, foi criando um contexto próprio. Eles inventaram, por exemplo, uma entrevista em que explicam o que é a arte conceitual. E o entrevistador tem o nome de Arthur R. Rose, um trocadilho infame com o Rrose Sélavy do Duchamp. A entrevista é fake, o entrevistador não existe, mas ela cria um contexto discursivo para esses artistas. É um trabalho sobre a inserção do trabalho.
O Boletim da Juventude tem esse lugar. Ele quase não é obra, mas um contexto no qual todas as outras obras se encaixam.
NL: Por fim, queria te perguntar sobre o papel discursivo na sua produção e a importância da fala do artista.
DJ: O que eu procuro fazer nos meus trabalhos é contar uma história. Há sempre uma questão narrativa, mas ela é sempre documental. Nesse sentido, a fala aparece como uma maneira de articular elementos que já existem, sem nunca tomar o lugar deles: a interpretação não pode substituir o trabalho. Ela não explica, ela é o próprio trabalho. A questão da fala, mais uma vez, foi algo que eu tirei da arte conceitual, quando a linguagem invade o campo da arte. Eles defendiam que existe uma atribuição do artista em apresentar seu trabalho. Se você não fizer isso, alguém vai fazer por você. Possivelmente, mal. Essa função inclui apontar os contextos físico-arquitetônicos, históricos, sociais, institucionais onde seu o trabalho está inserido. Acho que cabe a mim tentar apresentá-lo da melhor forma possível, mas outra coisa é o que vão fazer com ele depois, e aí não tenho mais monopólio de nada. Minha fala, nesse caso, é como qualquer outra, ou até pior.