Guy Amado
É no nicho das discussões acerca do embate entre a noção de real, representação, reprodução da obra e seu simulacro que se insere a pintura de Gilberto. Sua produção privilegia o discurso interno da obra, no sentido de seus quadros possuírem quase a necessidade de falar de si e por si, de remeterem à própria razão de existirem; problematizam a própria razão de serem realizados. Por conseguinte, aludem à sua condição de obra de arte e carga de significados a ela inerente, passível de interpretações e julgamentos.
Quando apresenta a imagem fotográfica de uma mata, que reproduz em crayon na tela ao lado, propõe um jogo de inversão de expectativas ao espectador condicionado: na imagem reproduzida, agora numa escala monumental, percebe-se que alguns elementos foram suprimidos em relação à "matriz" fotográfica. Artifício para se questionar a noção romântica da fotografia como veículo de tradução da verdade, do "mundo real", sinaliza também um saudável ceticismo quanto às possibilidades de apreensão do mundo perceptível, particularmente quando para muitos vive-se a chamada "era da imagem".
O jogo continua, agora com uma lareira. A expectativa de uma abordagem que privilegie a forte carga simbólica inerente ao fogo – ou sua representação pictórica, no caso – é esvaziada quando se constata que aquela lareira nunca chegará a ser uma lareira: ela sabe da impossibilidade de alcançar essa condição, simulacro que é, aprisionado numa pintura estruturada para reforçar essa sensação de impossibilidade. O estranhamento se acentua pela frieza que quase não chega a emanar deste fogo em preto-e-branco, numa composição de sofisticada solução cromática: o grande campo cinza acima da imagem funciona, a um só tempo, como fator de estabilidade ("legitima" a estrutura compositiva da obra), convergência (orienta o foco ao objeto abaixo) e nulidade (concentra os valores tonais que constituem a imagem, anulando simbolicamente sua in-existência).
E se a história da arte por vezes fornece um ponto de partida para Gilberto, ele vai às raízes: desenvolve uma série de reproduções, executadas em papel-carbono, sobre os célebres esboços de Leonardo da Vinci. O jogo aqui é aberto: trata-se, agora sim, da prática deliciosamente fetichista de reproduzir e reordenar (e "possuir"), a seu gosto, pequenos fragmentos dos cadernos do mestre renascentista. O suporte escolhido assume as intenções. Quando observados com a devida atenção, percebe-se a sombra de uma interferência abrupta no processo, como se o perpetrador da ação tivesse sido flagrado no meio do ato. Os carbonos que lá jazem, meio preenchidos, cada folha contendo apenas alguns elementos calculadamente dispersos - no que ganham nova autonomia -, são a um só tempo processo e produto, resultado e evidências. O mecanismo de sedução circular que parece determinar sua produção é aqui explicitado, apresentado sem floreios.
A pintura de Mariotti não aspira ao hiper-real, até porque, lembra Jean Baudrillard, o mesmo estaria além da representação por funcionar inteiramente no terreno da simulação; e a simulação definitivamente não tem lugar no jogo proposto pelo artista. Sua habilidade reside em chegar a uma solução visual técnica que não dê margem a interpretações equivocadas: nem a representação idealizada nem a mera sugestão de imagem, mas um plano entre, única posição possível para fruição do discurso que propõe.