Victor Leguy

São Paulo/Brasil, 1979

  • Detalhe da obra Hämeenkyrö news VI (2013), de Victor Leguy
  • Detalhe da obra Sastamaala II (2013), de Victor Leguy
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Victor Leguy

Victor Leguy é natural de São Paulo (SP, 1979). Formou-se em desenho industrial e artes visuais pela faculdade Mackenzie (SP, 2003). Participa de mostras no Brasil e no exterior, incluindo uma individual no Museu de Arte de Ribeirão Preto (SP, 2014) e as coletivas SideShow, no Heiska Cultural Centre (Finlândia, 2013), 38º Salão Contemporâneo de Artes de Ribeirão Preto (SP, 2013), What kind of “real”, na Albemarle Galerry (Inglaterra, 2012), entre outras. Fez as residências artísticas Arteles Residency (Filândia, 2013) e Halka Art Project (Turquia, 2012). 


Josué Mattos entrevista Victor Leguy

Josué Mattos:
À primeira vista, a rasura, o objeto descartado e o anonimato parecem pontos de partida para uma pesquisa que você desenvolve com o intuito de reagrupar situações díspares. Você coleta experiências alheias por meio de conversas informais e, para tanto, se utiliza de diferentes meios de comunicação. Em seu trabalho é comum o valor do encontro —como é o caso da obra que mostra nesta exposição, resultado de uma pesquisa realizada em residência na Finlândia, em 2013—, mas ele não exclui informações obtidas de maneira contrária, cuja autenticidade, por ser comprometida, desfaz as regras do jogo. O que poderia ser interessante para começo de conversa é pensar nestas incongruências, que valorizam eventos históricos para vê-los se tornar ficção e, como um contraponto, trazem a dimensão factual, mas sempre lacunar, da história, para uma possível leitura, à contrapelo, daquilo que você ouviu, leu ou pôde experimentar em momentos de pesquisa in loco.

Victor Leguy: Parece interessante como alguns elementos do mundo se apresentam constantemente para mim, a cada vez, repetindo a mesma cena, mesma história com um ínfimo detalhe de que não estava lá no primeiro olhar. O que era já não é mais. Normalmente, a diferença em questão é mínima, mas altera profundamente o curso do que vem a seguir, o que me faz atentar para a relação de rasura, como ela se apresenta, agindo de forma a alterar o que já estava certo do que era, e reposiciona informações de forma definitiva até sua atuação se repetir, seguindo um novo curso. Nesse ponto existe uma aproximação muito clara, a meu ver, com a particularidade dos objetos descartados. Neles existe a possibilidade da ressignificação, visto que já possuem uma história de “vida”, um trajeto no tempo, aquela espécie de “bagagem” necessária para se tornar singular de alguma forma. Isso me faz traçar aproximações e distanciamentos que se relacionam prontamente com outros elementos que, como ele, estão na iminência de entrar e que talvez tenham sido separados pela ação do tempo, e ainda assim estão impregnados de experiências prontas a serem conectadas e energizadas. Transitando por entre tudo isso está a questão do anonimato, que funciona como uma espécie de corpo presente em cada situação, se abstendo de identidade, mas executando ações específicas. Esses pontos estão diretamente relacionados a essa espécie de coleta de experiências alheias; estas estórias se moldam de acordo com o momento que são contadas e passam a me pertencer também, mas costumo separar em dois grupos ―o primeiro― por meio da transcrição, as palavras ditas são resguardadas como foram soltas, para que exista a fidelidade total neste registro. E o segundo ―a interpretação que mantém parte destes lugares e fatos, mas que se soma a outras variantes daquele momento em que é colocado como o registro que estou efetuando.

JM: A dimensão da falha é algo que você percebe como ponto crucial em seu trabalho. Ela parece construir o ponto de partida para narrativas intransitivas meio sem pé nem cabeça, justamente porque fazem da falha a possibilidade, ainda que ocasional, que dá lugar a situações imprevistas. Como se a falha da frente suscitasse a exibição do verso e inversamente.

VL: Sim, verdade, a falha é ponto que me toma grande atenção; ela serve de porta, de fresta que possibilita que algo novo surja, aflore, se conecte, ressignificando ou reordenando uma lacuna dentro de qualquer assunto ou suporte para o qual olhamos. Ela, ainda, se põe como inevitável, pois, na verdade, ela é. Sendo assim, como lidar com isso? Aprofundando um pouco mais na parte matemática de sistemas, nos deparamos com o conceito de tolerância a falhas, que foi apresentado originalmente por Avizienis, em 1967. Neste processo, os sistemas absorvem de forma mecânica ou computacional essa nova informação (falha). Entretanto, estratégias para construção de sistemas mais confiáveis já́ eram usadas desde a construção dos primeiros computadores. Apesar de envolver técnicas e estratégias tão antigas, a tolerância a falhas ainda não é uma preocupação rotineira de projetistas e usuários. Existe, ainda, um fator de contenção e de precaução usado em sistemas, a duplicação, que é usada para a substituição de componentes com falhas permanentes e também para à detecção de erros, em que, então, duas unidades executam de forma sincronizada a mesma ação, o que nos faz pensar em outro assunto relacionado à física quântica e à matemática, a duplicação de universos, o paralelismo de realidades (assunto que pretendo abordar mais tarde). De volta ao processo mais amplo que envolve falhas, quando uma falha dá origem a algo novo, nos ajuda a enxergar uma porta, um caminho através do que antes foi um erro, e, assim, nos transporta para algo que, a princípio, não parece nocivo. Por outro lado, quando acontece o oposto, as consequências são catastróficas, pois, deixando de lado a parte computacional, a parte humana é, em raríssimas vezes, detectada e atua de forma exponencial no processo.

JM: Ainda sobre as pessoas com quem você cruza e que você retrata, como você afirma, algumas foram encontradas pessoalmente e outras em documentos cuja origem nebulosa sequer permite pensar sobre o que foram ou o que são, caso ainda existam como sujeito histórico, porque podem ser outro anônimo da história. E, em meio a tantas orientações disfuncionais, a reagrupamentos desconexos e a temporalidades anacrônicas, essas figuras, quando chegam em seu trabalho, perdem quase sempre a identidade. Elas se tornam uma espécie de fantasma que vagueia, alternando os rumos da história. Nesse sentido, uma triangulação construída entre identidade, história e ficção poderia ser a deixa para você falar um pouco sobre esses pontos que aparecem com frequência em seu trabalho, que parecem pensar o sujeito como aquele que vagueia sem rumo e origem definidos. 

VL: Acho particularmente curioso como funciona o mecanismo da memória neste processo das estórias. Atentei-me ao fato que a cada vez que ele acontecia uma parte da história era alterada, da mesma forma que um fluxo de correlações se apresenta, pois elas são recontadas sistematicamente de geração em geração por descendentes, depois pelos descendentes dos descendentes, num tipo de onda sonora que se propaga, se amplia, como uma espécie de dízima estranha e caótica. Ocorre-me, ainda, uma analogia que cabe bem a este caso: dois amigos se encontram e conversam; em seguida, um deles parte para uma cidade e o outro para outra, mas a memória do encontro permanece. Cada um vai encontrando outras diferentes pessoas sucessivamente, e a informação contida na conversa inicial propaga-se nos encontros que se seguem; esse fluxo de correlações se assemelha a todos os sistemas formados por diversas partículas (gazes, líquidos etc.), que englobam uma quantidade cada vez maior de partículas. Surge, então, uma segunda espécie de tempo, não ligado às moléculas individuais, nem a cada um dos indivíduos, mas sim às relações entre as moléculas ou, no caso às pessoas, talvez uma espécie de memória residual que se apresenta sem um sujeito definido, com muitos ou sem nenhum.

JM: Ao mesmo tempo em que alguns desses assuntos parecem mobilizar artistas de diferentes lugares do mundo, fazendo com que um ou outro desses problemas se torne lugar-comum da arte contemporânea, você mantém um firme interesse em encontrar um meio de se colocar no mundo. Obviamente, a via que você procura não parece ser a da singularidade ― situação muito exigida no processo de elaboração da marca de registro que favorece o mercado a transitar aqui e acolá com seus artistas favoritos. Por isso me parece oportuno falarmos sobre seu entendimento a respeito de ideias como trajeto e trajetória na arte contemporânea. Já que o seu trabalho é, em certa medida, um elogio ao deslocamento, ao trilhar e ao escavar, parece-me interessante pensar sobre como você integra o assunto que o mobiliza com a noção de trajetória vinculada ao próprio artista. 

VL: Trajeto e trajetória, o espaço que estamos ocupando e a linha que decidimos traçar para chegar a algo, algum lugar ―o artista, a meu ver, perambula constantemente num terreno onde pouca coisa se pode realmente ver, enxergar, algo certificado, uma sensação de constante meia-luz― parte se pode ver, parte não. Penso ser lindo o fato de tatearmos algo que muda de forma constantemente, pois nossa visão muda; o artista é o observador e um mero figurante no universo cartesiano em que vivemos, mas passa a interferir diretamente no fenômeno observado. Dentro da pesquisa que tenho feito, os dados e as informações contidos no seu interior, que embasam, que atestam, se atualizam constantemente, recebem, a todo momento, informações que passam a fazer parte da obra até a hora de sair do local onde estou produzindo. Sinto-me uma espécie de artista-observador ―dependendo da experiência idealizada para estudar o fenômeno, sou eu quem, em ultima instância, decide o que quer ver, se o aspecto partícula ou aspecto ondulatório a que me coloco. O mundo material, portanto, apresenta-se enquanto interação entre o observador e a coisa observada, são inseparáveis. 
  • Realização: