Carlos Eduardo Riccioppo

Em uma recente mostra em São Paulo (1), Wagner Morales apresentava uma série de trabalhos chamada Base, composta por dez imagens realizadas a partir de capas de discos de bandas de rock; o artista alterava essas imagens, buscando retirar, dessas capas, quaisquer referências ao nome das bandas, quaisquer figuras, quaisquer logotipos, restaurando, então, a imagem “de fundo” que residia ali. Depois, imprimia essas imagens de modo refinado, em papel de algodão, expondo-as emolduradas ou em vitrines (2). Além disso, ampliadas um tanto, tais imagens tendiam a esgarçar a compreensão de que se tratava de objetos muito determinados – as capas dos LPs –, e então elas se disponibilizavam a ser mostradas, bem ou mal, com o estatuto de fotografias (como paisagens, vistas de edifícios, imagens debaixo d`água). Não fosse o fato de que se tratasse de discos tão bem conhecidos; e não fosse também o fato de que, ali pela região das bordas dessas imagens, fosse possível ver a dobra daquelas capas, seus amassados e rasgados.


Por mais que operasse transformações significativas naquelas imagens, não parece que o artista pretendesse extrair, daquelas capas de LPs, seu caráter material; e nem subtrair desses objetos parte suficiente para que eles perdessem totalmente seus nexos. Muito ao contrário. A subtração parece ingressar nesses trabalhos não como um desnorteador do sentido das coisas, dos objetos, mas, antes, como uma operação que lança esses objetos a uma espécie de “teste” de sua permanência na imaginação da cultura dos dias de hoje. É claro que esses trabalhos identificam certo descolamento entre aquelas imagens “de fundo” que os LPs carregam e o que a elas se sobrepõe em primeiro plano, que eles apagam; e, se isso ocorre, é certo também que esses trabalhos estão ali a indagar qual é o estatuto daqueles “fundos”, até que ponto eles não são indiferentes ao que a eles é adicionado. Mas, entender-se como “base” (3) talvez seja um modo desses trabalhos dizerem que desconfiam daquele descolamento. Decerto não tanto porque, isoladas, aquelas imagens de fundo fossem capazes de dizer respeito por si mesmas ao universo de cada uma das bandas, de cada um dos álbuns em que aparecem; mas, sim, porque, ainda que exibidas sem a mediação dos nomes e das figuras que a elas se acoplaram, elas já foram tão demasiado vistas, tão demasiado apreendidas em sua anexação àqueles universos, que, quando isoladas, a elas só é possível conceder o estatuto de uma falta, de uma carência, ou uma existência individual compensada pela reposição, numa imaginação coletiva, daquilo que nelas foi elidido. Quem, afinal, não fica imaginando se não falta um bebê e um dólar sendo fisgado naquela imagem de piscina que aparece em um dos trabalhos da série?


No novo trabalho de Morales, apresentado agora no Paço das Artes, em São Paulo, aquela espécie de “teste” parece ter sido ampliada, migrando de um objeto em especial a todo um universo cultural.


Em Black Power, Morales organiza dois outdoors, um deles recoberto com folhas de papel sulfite branco, e o outro, com folhas de papel carbono preto, triangulados para ficarem ligeiramente contrapostos entre si. Sobre o painel de superfície branca, o artista projeta uma luz negra; sobre o de superfície preta, uma luz branca.


Embora muito distintos, Base e Black Power parecem ter em comum o fato de que elegem contra-planos ou planos de fundo em sua constituição; se no primeiro eram as imagens contra as quais as informações referentes a músicos e bandas que se destacavam nos trabalhos da série, no segundo, são os painéis monocromáticos que se exibem, e, consequentemente, a espécie de nicho criada por sua disposição no espaço, que faz com que surjam ali como verdadeiros “backgrounds” ou anteparos a qualquer ação que se desenvolva à sua frente.


Mas, assim como em Base aquelas “imagens-de-fundo” revelam-se comprometidas com o que sobre elas foi uma vez aplicado, por conta de sua relação demasiado estabelecida no imaginário cultural contemporâneo, também em Black Power aquela espécie de espacialidade criada pelos anteparos iluminados está longe de se oferecer esvaziada de sentido.


Não é preciso dizer que o preto e o branco aparecem de saída no trabalho comprometidos num jogo de supremacia literal – ora preto sobre branco, ora branco sobre preto –, operado através do efeito da incidência de uma cor sobre a outra, de uma frequência sobre outra (4); mas, o que parece mais importante, tal jogo não se dá de modo limpo, não se oferece sem que traga à tona uma série de ruídos em sua constituição; esse jogo é marcado, antes, pela estridência com que essas cores ou com que esses termos se apresentam no trabalho, por um lado, e, por outro, pelo fato de que ocorre nessa região de fundo, de segundo plano – esses outdoors são, afinal, peças que fazem as vezes de um segundo plano para quem passe por ali, como se disse... 


Assim como naquelas imagens de capas de discos eram invariavelmente repostos todos os elementos que delas foram subtraídos pelo artista, por conta da forte presença delas num imaginário cultural, também aqui há uma compensação, uma operação de síntese que é deixada pelo trabalho à cargo de quem o vê. Se aquelas imagens plácidas e vazias das capas pareciam chamar para si todo um imaginário da cultura rock, em Black Power, as superfícies iluminadas dos outdoors arrastam consigo toda uma massa cultural que excede o jogo entre as cores e acaba esbarrando, de repente, em uma memória de uma atmosfera disco, sobretudo por conta do uso da iluminação; ou, então, que se deixa exibir nessa região de certa indiferença que é o reino do efeito visual, da estridente incidência da luz negra sobre coisas brancas...


Mas, não seria essa a região mesma em que repousam hoje os signos daquela movimentação de uma cultura que, lá pela década de 1970, inventava uma radicalidade “política” que se confundia, de repente, com o aparecimento de uma cabeleira, que se queria encontrar num clube noturno, que se deixava ver muito mais numa vontade de reinvenção comportamental – estes, os signos que, afinal, tornaram o termo “black power” conhecido desde então (signos, que à primeira vista, parecem ser tão pouco informados politicamente, ou que não são à primeira vista capazes de reclamar sua conexão com qualquer debate em que quisessem tomar partido)?


Não é de outro modo senão exibindo-se como um pano de fundo que o trabalho se permite arrastar consigo toda essa massa cultural, toda essa série de elementos daquela época que permaneceram na cultura até os dias de hoje, um tanto como que exauridos de seus conteúdos mais exigentes e convertidos, então, em meros “jeitos de ser”, “estilos pessoais”, em meras questões de gosto e aparência – como se disse, a cabeleira, a iluminação estonteante da atmosfera dancing, disco, um certo tipo de música. A tudo isso, é claro, o trabalho faz referência; mas o que parece mais radical, ali, é que, rearticulando esses signos propositadamente sem muito alarde, arremessando-os àqueles dois contra-planos, ele como que recria uma região sobre a qual esse rescaldo cultural possa ser indagado, relembrado, onde ele possa reverberar por si mesmo.
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Base e Black Power não são os primeiros trabalhos de Morales a tratarem da música, do rock, do funk ou do universo da cultura dos anos de 1960 e 1970... Em Faixa escondida (5), ainda de 2003, um aparelho de som reproduzindo uma música do Elvis era filmado em uma praia deserta. O vídeo, então, jogava entre o testemunho da existência (sem que oferecesse muitas referências de sua localização exata) e a literalidade de esconder, em algum canto do planeta, a existência de mais um Elvis, imantando-se com toda a ansiedade – mas também com toda blague, piada, exercício imaginativo sem muita consequência – de um imaginário coletivo em descobrir algo de novo ou em manter vivo o ídolo de algum modo. “Elvis não morreu”, “descoberta mais uma raridade do Elvis” – é de tudo isso que rodeia a figura do cantor até os dias de hoje que o trabalho se alimenta, são esses os verdadeiros materiais dos trabalhos de Morales.


Sem dúvida essas obras se encantam com os signos, com os ícones e com os modos de comportamento em si mesmos dos universos culturais a que se remontam. E é isso o que confere a elas uma certa irreverência, às vezes um certo humor, uma aura meio paródica. Elas parecem não se incomodar nem um pouco em flertar indiscriminadamente com o impulso analítico da decomposição e compreensão dos meios tecnológicos envolvidos no processo de construção de um filme (6) e, ao mesmo tempo, com a cafajestagem de um Serge Gainbourg – como em Filme de cul (em português, Filme de foda), de 2006, em que um homem e uma mulher passam aproximadamente dez minutos sentados, vestidos, sem grandes expressões, sussurrando, em francês, o que fariam um com o outro na cama, e com absoluta riqueza de detalhes; ou como quando o artista projeta, sobre a cama e sobre a parede de um quarto, uma imagem de Brigitte Bardot deitada, ou, ainda, em diferentes cantos de um banheiro, cenas do filme Psicose, de Hitchcock (ambos os trabalhos fazem parte da série Homevideo, de 2008). 


A trajetória do artista é repleta de aparecimentos dessas referências que são, no mais das vezes, imediatamente reconhecíveis; e por isso mesmo elas parecem, à primeira vista, um tanto alheias, externas aos trabalhos – elas afinal pertencem decisivamente ao inventário do imaginário da cultura contemporânea. Mas é exatamente isso o que parece importar para essas obras. Antes de serem um elogio sereno a um passado já distante, a obras tornadas “clássicas” ao longo do século XX, os trabalhos de Morales pretendem a investigação de um contencioso, de uma permanência desses universos na esfera da cultura de massa, da cultura comercial; e, para tanto, eles descobrem que não bastaria tomar esses materiais da cultura numa esfera abstraída, do discurso a respeito delas, mas que seria preciso encontrá-los em sua dimensão “suja”, repleta de contradições, materializados em objetos sobre os quais paira todo tipo de encantamento. Porque talvez resida nessa “aura” um tanto indefinida a capacidade desses signos de reatarem eles mesmos com a sua história.

Abril de 2012


Notas


1 - Tratava-se de Base, exposição que o artista realizou na Galeria Transversal, entre 30 de março e 21 de abril de 2012. Na mostra, o artista apresentava Thierry, um filme de curta-metragem silencioso e em preto e branco em que a câmera, acoplada a um steadycam, busca acompanhar a fluidez dos movimentos de um homem cego que passeava pelas ruas da cidade; Fica, outro curta-metragem, em que um cão é filmado durante o tempo em que obedece à ordem “fica” de seu dono; Screen Shots, filme que compila oito retratos de aparelhos televisores que aguardam, em calçadas, sua retirada; e Base, uma série de 10 imagens realizadas a partir de capas de disco de bandas de rock, entre elas Nirvana,Beattles, The doors, Michael Jackson e Pink Floyd.


2 - As imagens de Base variavam entre 110 x 110 cm, 60 x 60 cm e 40 x 40 cm.


3 - Talvez se pudesse concordar com a reivindicação que o texto do folheto que acompanhava a mostra trazia: “(...) o título é Base e ele sugere a possibilidade de se pensar a vida a partir de um ponto de vista mais rebaixado, passando ao largo do excesso de literalidade dos discursos contemporâneos (...). Base, portanto, no sentido que o termo traz de ser a parte inferior de alguma coisa, o seu suporte. Um suporte indiferente à coisa”.


4 - O que se declara no nome da série de que Black Power faz parte: o trabalho seria o primeiro de uma série chamada Política literal.


5 - O vídeo, em cores, possui cerca de 8 minutos e foi filmado em uma praia do Rio Grande do Sul.


6 - De fato, uma parcela significativa dos trabalhos de Wagner Morales trata de se oferecer de modo um tanto “analítico”, exibindo o jogo de dispositivos que compõe cada trabalho. Basta pensar em Fazer um vídeo, obra que o artista expôs na Galeria Virgílio, em São Paulo, entre novembro e 2006 e janeiro de 2007. Ali, tratava-se de uma instalação que “desmontava” a realização de um vídeo em três ambientes, analisando separadamente os processos de captura de som e imagem, a inclusão de efeitos e a edição, de modo que um primeiro e um segundo ambientes eram captados por uma câmera de vídeo, e, através de um processo de edição, projetados como uma mesma imagem no ambiente 3; neste terceiro ambiente, o som e a imagem também são gravados e a imagem resultante é mostrada no primeiro ambiente.


Black Power

Wagner Morales

  • Black Power, de Wagner Morales
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Carlos Eduardo Riccioppo

Carlos Eduardo Riccioppo é integrante do Centro de Pesquisas em Arte Brasileira do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Possui graduação em Artes Plásticas e é mestrando em Teoria, História e Crítica de Arte pela mesma instituição.

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