Guy Amado
O cenário em que se insere a produção artística contemporânea - tempos de pós-ismos, tautologias, esgotamento e revisão de fórmulas - permite, quando não exige, o questionamento de uma série de fatores a partir dos quais se dão algumas das discussões que ainda geram força motriz para estes mesmos processos.
As relações entre circuito de arte e mercado, o "valor da arte" e a busca por um certo caráter de acessibilidade da mesma - quais sejam as nebulosas circunstâncias das tensões aí geradas - são algumas das questões que constituem o leit-motiv do trabalho de Ricardo Ramalho.
Adotando uma postura a um só tempo distanciada e de envolvimento, crítica na mesma medida que apaixonada pelo processo artístico, com todas as suas idiossincrasias, Ramalho procura levantar sua bandeira, clamando por uma certa deselitização da arte. Mas o que poderia soar apenas como uma cruzada quixotesca, ingênua, especialmente em tempos de patrulhamento do politicamente correto e da constatação de uma tendência à prolixia no discurso que respalda o processo ou até mesmo a poética do artista, sua empreitada ganha - até por conta disso - um corpo de irreverente subversão, onde não se detecta qualquer pretensão que não a do comentário direto, sarcástico e despudorado acerca de um certo "sistema", reafirmando de alguma forma uma nostalgia por tempos em que outras premissas vigoravam.
Sua produção, se vista em retrocesso, reflete um pouco da compulsividade com que desencadeia ideias; oscilando do retrato à paisagem, das investigações abstratas (a série Nadas, 1996) à recente série dos pequenos quadros- charge aqui presente, do happening descompromissado passando por incursões pelo tridimensional, Ramalho desfila um verdadeiro mosaico de uma produção que poderia, em última instância, ser vista como um conjunto de investigações isoladas; há, no entanto, elementos recorrentes em sua obra que contribuem para uma leitura de consistência: uma forte presença estilística e conceitual da Pop Art, que revisita livremente, e a ironia aliada à presença de um elemento ornamental, que se detecta aqui e ali, são fatores que reafirmam uma postura crítico-sarcástica.
Na série Paisagens Nevadas (1999), comenta a dialética figuração-abstração, onde o referencial figurativo - paisagem - é apenas sugerido: a imensidão gelada que se recorta contra o azul do céu que espreita, quase à margem da composição, configura, em si, uma situação potencialmente abstrata. O artista só faz reiterar essa sensação, fornecendo apenas referenciais mínimos à percepção ou apreciação figurativa, quando introduz, contido, as pequenas manchas que identificamos como rochas.
Ao efetuar a conversão do Extintor (1999) - artefato do cotidiano condenado à mais absoluta indiferença, lembrado apenas quando de situações limite - "em arte", prossegue com seu jogo de relações de equivalências e inversões que norteia sua produção mais recente: o objeto ganha a imponência que sua condição primeira, austera e de abandono, ignorado mas indispensável, lhe nega. Alterando a peça, agora investida de uma nova hierarquia, Ramalho propõe uma leitura pessoal de caráter metafórico decorrente da inversão de status do objeto, que passaria a operar como um índice cognitivo de instâncias além de sua própria natureza.
Finalmente, no conjunto de pequenos quadros-charge (1998-99) já mencionado, a irreverência e o sarcasmo latentes em sua obra emergem de forma rasgada. Valendo-se de um repertório essencialmente gráfico, resolvido pelo pictórico, o artista vai direto ao ponto para ele crucial: questões acerca do circuito da arte e seu mercado e do sistema endêmico onde se operam estas ações são lançadas, por meio de palavras de ordem e slogans tão contundentes quanto singelos, em composições de referência claramente publicitária. Talvez seja nesta série onde mais claramente se perceba sua verve iconoclasta, corroída pelo humor, a serviço de uma causa condenada à eterna perseverança.